Cabo Anselmo. Lembram?

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Nonato Guedes

Uma das figuras mais sinistras e execradas da História brasileira foi José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, um agente a serviço da repressão infiltrado nos movimentos grevistas que precederam o golpe de 1964. Ele foi o jovem marinheiro cujo discurso inflamado no Automóvel Clube do Rio, em março daquele ano, precipitou a deposição do presidente João Goulart. O discurso, soube-se recentemente, havia sido preparado por Carlos Marighela, um militante da luta armada e uma lenda no universo da esquerda radical brasileira, mas Anselmo, ótimo orador, ficou com a fama. Seu nome foi para a lista dos primeiros cassados após o golpe e logo o prenderiam.

Ficou quase dois anos numa delegacia carioca, de onde fugiu com facilidade e uma explicação esquisita: tinha a chave da cela. Fama conquistada, Anselmo conseguiu o apadrinhamento de Leonel Brizola, então exilado no Uruguai, que buscava gente valente para formar seu Movimento Revolucionário Nacional, e o mandou a Cuba para fazer o curso de guerrilha. Nos duros treinamentos, Anselmo não mostrou a valentia que Brizola esperava. Deu-se que, por outras razões, o MRN foi desmantelado, e Anselmo, agora na condição de guerrilheiro, retornou ao Brasil com a importante missão de estabelecer contato entre as organizações revolucionárias e montar uma base no Nordeste.

Como relembra a edição especial de “Caros Amigos” sobre o golpe, o cabo Anselmo foi apresentado como quadro da maior confiança e passou a circular em qualquer ambiente, simpático e bem falante. Executa tarefas como esconder munição e cuida da obra que o aparelho da VPR constrói em Osasco, na grande São Paulo. Passa a morar num apartamento no centro da capital paulista, com o militante Edgard Aquino Duarte, funcionário da Bolsa de Valores. No dia 30 de maio de 71 os dois são presos e circulam versões distintas. Primeira: um cheque de Edgard foi rastreado, a polícia chegou ao endereço e aproveitou para levar o outro morador. Segunda versão: a seleção feminina cubana de basquete se hospedava ali perto, no hotel San Raphael, e naturalmente qualquer um que se aproximasse ficaria marcado pelos agentes policiais. Anselmo dá um embrulho à capitã do time, Margarita, um chaveirinho para ela entregar a Fidel Castro. Os agentes descobrem seu endereço e prendem os dois – ele e Edgard.

No dia quatro de junho, Anselmo prestou depoimento ao delegado Fleury e revelou seus contatos. Ao jornalista Octávio Ribeiro, Anselmo disse que a decisão de se passar para o outro lado se deu por tomada de consciência e medo de morrer. Ao jornalista Percival de Souza, contou que sofreu torturas e viu-se diante do dilema de morrer ou delatar. Preferiu a segunda opção, amaciada por promessas de Fleury como garantia de vida e salário de 300 dólares. Foi “hospedado” numa cela do Dops com todo o conforto de uma suíte de primeira classe, inclusive tear para tapeçaria, seu passatempo, e livre acesso à sala da chefia. Mas cachorro é cachorro, sinônimo de delator no jargão policial. Os próprios agentes da repressão passaram a desprezar o novo colega.

Enquanto Anselmo se “hospedava” no Dops, a repressão montava para ele, num prédio do bairro das Perdizes, em São Paulo, um aparelho policial equipado com microfone e câmeras por todo canto, para registrar os encontros e as conversas com visitantes. Gente em quem a repressão gostaria de pôr a mão passa a freqüentar seu novo endereço, como José Raimundo da Costa, amigo de muitos anos. Passado algum tempo da visita que fez a Anselmo, uma barreira policial apanha José Raimundo no Rio de Janeiro. Depois de supliciá-lo e matá-lo, enterram-no com nome falso. O falso líder dos marinheiros também entregou às forças de repressão a própria namorada, Soledad Barret Viedma, a Sol, que estava grávida. Um a um, dois a dois, iam caindo os companheiros do ex-marinheiro, que manteve o sangue frio para desempenhar seu papel.

Em 2004, numa agência dos Correios em São Paulo, foi postado um pedido de indenização, como aqueles que o governo concede aos perseguidos pela ditadura militar. Até janeiro de 2008 o pedido não havia sido julgado por uma simples razão: não havia no CPF, o Cadastro de Pessoas Físicas, o nome de José Anselmo dos Santos, o requerente e traidor. Ou agente infiltrado.