Filho do jornalista Vladimir Herzog, um dos mais de 400 mortos durante a ditadura militar no Brasil, Ivo Herzog vê na defesa de pautas conservadoras um reflexo da tradição brasileira de impunidade contra agentes do Estado e uma deficiência da educação. “As pessoas não sabem o que foi viver na ditadura”, afirmou em entrevista ao HuffPost Brasil.
Na semana passada, Herzog entregou, junto com cinco partidos, uma moção na Procuradoria Geral da República (PGR) contra o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ). O parlamentar se declarou a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff “em memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”. O militar foi o primeiro a ser reconhecido pela Justiça como torturador.
O diretor do instituto que leva o nome do pai também alerta para o avanço de pautas contrárias aos direitos humanos em um eventual governo de Michel Temer.
Ivo Herzog acredita que o País caminha para abafar as investigações de corrupção resultado de um “pacotão” do PMDB dentro da articulação do impeachment. “Quando você está numa festa, a festa vai, vai, vai. Até que servem o bolo. Depois que servem o bolo, acaba a festa. O bolo é o impeachment. Eu acho que depois que o impeachment passar, acaba a festa”, afirmou.
Contrário ao afastamento de Dilma, Herzog diz que o impeachment é resultado da atuação de agentes políticos ao canalizar a insatisfação popular com a classe política de modo geral, manifestada dede os protestos de junho de 2013. Ele classifica como “criminosa” a condução do processo pelo presidente da Câmara,Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e acredita que são altas as chances de ele escapar da cassação do mandato.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
HuffPost Brasil: No Brasil não houve condenação de torturadores, diferente de outros países da América Latina que também viveram regimes de exceção. Isso contribui para discursos como o deputado Bolsonaro?
Ivo Herzog: Sim. A Lei de Anistia do jeito que é interpretada hoje no Brasil, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal é um atestado de impunidade para que agentes do Estado ou pessoas ligadas ao Estado continuem impunes pelo crimes que cometeram e que vêm cometendo. O Bolsonaro é só um sintoma. Tem casos até mais graves, como a violência policial nos grandes centros urbanos, São Paulo e Rio de Janeiro. Tudo isso tem um ponto em comum que é a tradição mais do que secular de impunidade contra agentes do Estado que a Lei da Anistia talvez seja um dos últimos capítulos dessa história. Mas ela vem da época do Império, da abolição da escravatura, a questão dos massacres indígenas. É uma questão que está no DNA praticamente do Brasil. E essa sequência, essa manutenção dessa política pública de impunidade ela também se reflete numa cultura à violência que tem no Brasil. É um país violento não só pelos agentes do Estado, mas pela própria população.
Essa visão restrita de direitos humanos defendida por alguns parlamentares também está presente na sociedade?
Com certeza. E essa sociedade é muito influenciada por uma mídia sensacionalista. Infelizmente uma parte da mídia faz um trabalho contrário à defesa dos direitos humanos. É aquela história de que “bandido bom é bandido morto”, que “direitos humanos é direito dos bandidos”.
Isso explica também algumas pessoas defenderem a intervenção militar?
As pessoas que pedem a volta da ditadura têm um componente conservador, em função dessa promoção de coisas anti-direitos humanos, mas não é o principal sintoma. Acho que o principal sintoma é uma questão de deseducação. As pessoas não sabem o que foi viver na ditadura. Na época da ditadura elas não poderiam, por exemplo, publicar a manifestação delas, opinar livremente sobre uma coisa que fosse contrário ao pensamento do governo.
Sobre a violência policial, na última semana a presidente enviou ao Congresso um pedido de urgência para votar um projeto de lei que acaba com os autos de resistência. Qual a chance de isso ser aprovado?
A gente tem um Congresso conservador, que em tese segue um caminho para medidas que restrinjam liberdade, restrinjam garantias de direitos humanos. E ao mesmo tempo você tem um Congresso – que talvez até numa dimensão maior – seja contra qualquer coisa que a Dilma venha e faça, como uma militância contra a Dilma e em favor do impeachment. É casuística a reação do Congresso.
Bancadas conservadoras têm articulado a votação de medidas em um eventual governo de Michel Temer, como a revisão do estatuto do desarmamento. O senhor acredita que tais pautas têm mais chance de avançar do que no governo do PT?
Uma boa parte do movimento pró-impeachment é das bancadas mais conservadoras. A gente viu isso inclusive na manifestação dos deputados no seu voto. Então eu acho que a gente vai entrar em um período mais à direita, mais conservador, onde conquistas sociais vão ser perdidas, uma série de coisas vão voltar atrás. Se o Congresso colocasse para votar uma pauta de pena de morte, passaria, por exemplo.
Por que o senhor assinou a “carta ao Brasil”, contrária ao impeachment da presidente?
Existe um processo muito longo, de muitos anos, com primeiro sinal de vida com as manifestações de 2013 e que volta em 2014 e em 2015 de insatisfação das pessoas com relação à nossa representatividade política e os caminhos que o governo têm tomado. Em 2013 essa insatisfação trouxe como símbolo e porta-voz a questão do passe livre, do aumento de centavos na tarifa do ônibus. E hoje ele traz como porta-voz o impedimento da presidenta. Mas tem uma coisa muito maior do que o impedimento da presidenta, que é esse processo de descontentamento com a sua representatividade política e com o encaminhamento do Brasil, a questão da corrupção. Tanto que as pesquisas mostram que, mais do que o impeachment, as pessoas querem uma nova eleição e aí inclui o Congresso. Querem a cassação do Eduardo Cunha. Tem desejos maiores. Só que de repente o impedimento da presidenta encontrou um caminho para acontecer e aliviar essa válvula de pressão e insatisfação. Fora a questão de que quem está a frente desse impeachment é absolutamente indigno. Você ter um processo presidido pelo presidente Eduardo Cunha por si só eu diria até que é criminoso.
Com o avanço do impeachment, tem aumentando a expectativa de uma espécie de anistia para Eduardo Cunha. Ao mesmo tempo, as pesquisas indicam que as pessoas querem que ele saia. Como essas forças vão se articular?
Eu acho que eles estão negociando anistia para um monte de gente. Para mim isso tudo é uma grande festa. Quando você está numa festa, a festa vai, vai, vai. Até que servem o bolo. Depois que servem o bolo, acaba a festa. O bolo é o impeachment. Eu acho que depois que o impeachment passar, acaba a festa. As pessoas vão cada uma para o seu canto e vão continuar tocando a vida como se nada tivesse acontecido.
A própria nomeação do ministro da Justiça num governo Temer pode influenciar também?
Com certeza. Eu acho que vai ser porque isso tudo é um pacote. Quem está fazendo essas negociações chama-se Eduardo Cunha. Em segundo lugar o (presidente do Senado) Renan Calheiros. O PMDB, enfim. Então está se negociando um grande pacotão, por isso que tem que ter uma coligação partidária, porque tem gente de todos os partidos envolvidos nesses escândalos de corrupção e eles querem negociar. “Tudo bem” ministério pra lá, ministério pra cá, mas em troca, “vamos esquecer esse negócio”. É a sensação que fica e é muito preocupante.
Voltando ao caso do Bolsonaro, quando entrou com a moção na PGR, o senhor disse esperar que não fosse preciso recorrer a entidades internacionais. Qual a expectativa sobre o avanço desse caso?
Eu espero que a gente consiga resolver essa questão na Justiça brasileira e não tenhamos de ir para uma corte interamericana. Eu sempre dou um voto de confiança. Eu não parto da desconfiança. O voto foi muito bem recebido, o sub-procurador falou que eles tinham recebido em uma semana mais de 20 mil denúncia contra o Bolsonaro de cidadãos. Mas de novo tem o tal do pacotão. Eu não sei se essa questão do Bolsonaro também não vai entrar num pacote aí de negociação.
Nas últimas semanas, a presidente Dilma têm tomado algumas medidas que respondem a demandas que os movimentos sociais têm pleiteado ao longo do mandato dela e que não haviam sido contempladas. Como o senhor vê esse movimento?
Essas ações são importantes, são positivas, mas a pergunta é “por que não fez antes?”. Mas uma pessoa que ocupa um cargo como a presidenta Dilma não tem autonomia de fazer tudo que gostaria de fazer. Ela tem de olhar um contexto que transcende a lista de desejos dela. E essa que é a parte dura e cruel e complexa de ocupar um cargo como esse. Então talvez agora ela esteja com mais liberdade de tomar decisões dentro da lista de desejos dela, até vislumbrando o fim do governo.
Fonte: Brasil Post