Liberdade de ir e vir
CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SP
Os caminhos da liberdade passam por nós como cavalos encilhados: poucas vezes ao longo de uma vida
A onda de comoção por Genoino preso e doente foi dissipada pela notícia de que, possivelmente, José Dirceu passará o dia fora da prisão, administrando um hotel brasiliense: ele terá almoço, lanche, piscina, quarto, encontros com quem ele quiser e R$ 20 mil por mês.
Alguém brinca: por R$ 20 mil por mês, se, durante o dia, posso me encontrar com quem eu quiser e comer “à la carte”, eu passo as noites em cana sem problema. Entendo a indignação: com livre acesso a visitas e telefones, Dirceu poderia continuar as mesmas atividades políticas pelas quais ele foi condenado.
De qualquer forma, o episódio me levou a pensar, mais geralmente, no que é, para mim, a privação de liberdade.
Para refletir nessa questão (e em outras), sugiro o filme “Trem Noturno para Lisboa”, de Bille August. Chatice: no filme, todos, suíço-alemães e portugueses, falam inglês, como se fosse o idioma do Espírito Santo. Aguente: a história vale a pena.
O filósofo Peter Bieri (bernense, como o protagonista da história) publicou, em 2001, “Das Handwerk der Freiheit” (Hanser), um bonito ensaio sobre “o ofício da liberdade” (existe uma tradução francesa, “La Liberté, un Métier”). Uma das ideias é que a liberdade é um trabalho incessante para inventar os futuros que queremos e para ter a coragem de fazê-los acontecer.
A história de “Trem Noturno para Lisboa” é, de alguma forma, ligada ao ensaio sobre liberdade publicado por Bieri três anos antes.
Gregorius, um solitário e insone professor que acha sua própria vida insossa, é fascinado pelas lutas e os amores de Amadeu de Prado e de seus amigos, no Portugal da época salazarista.
Mas Gregorius conhece a história de Amadeu só porque ele, Gregorius, deu prova de uma liberdade talvez maior que a de Amadeu e companhia, quando ele pegou um trem para Lisboa sem mala e sem pré-aviso, só para correr atrás do passado evocado num livro no qual ele esbarrou por acaso.
Ou seja, a coragem de Amadeu e de seus amigos é uma grande qualidade, mas o verdadeiro campeão da liberdade é Gregorius subindo no trem para Lisboa.
Gregorius estava de pijama não só em casa, mas, por assim dizer, na vida. De repente, na tentativa de salvar uma moça suicida, ele larga seu guarda-chuva –todos os seus guarda-chuvas, inclusive o amparo de sua Suíça natal.
Ele se parece com o protagonista hipotético de um conto de Kafka na coletânea “Contemplação” (Companhia das Letras), “O Passeio Repentino”. Nele, Kafka pede que imaginemos um momento em que nos entregamos à rotina e ao seu conforto: é noite, está frio e chove lá fora, acabamos de tirar a roupa molhada e já percorremos o ritual que nos levará ao aconchego quente e final de nossa cama. Se, de repente, levantarmos, tirarmos o roupão, vestirmos casacos e galochas para sair e encarar a obscuridade e o vento da rua deserta, então, ele diz, poderemos “ascender à nossa verdadeira estatura”.
Desta vez, Kafka não conta a história de quem, a vida toda, sentado diante do castelo, esperou para entrar, sem se dar conta de que a porta talvez estivesse aberta e lhe fosse reservada desde sempre. Desta vez, ele conta a história de nossa dificuldade para sair: a história da prisão de nossa inércia, a prisão de quem não se atreve a encarar o gelo lá fora.
Para quem vive confortavelmente numa prisão que ele mesmo construiu, é como se o conforto e o aconchego pudessem esconder os muros e as grades de sua casa, que é, sem ele saber, uma prisão –eventualmente, dourada.
Se estamos com medo de encarar as consequências de nossa liberdade e, por isso, vivemos em prisões douradas que não enxergamos e que nós mesmos construímos, certamente não temos como entender de quê estão sendo privados os presos, sobretudo quando eles têm direito a piscina e pizza.
Pois bem, eles estão sendo privados da liberdade de subir um dia num trem noturno para Lisboa –atrás de nada, atrás de um livro encontrado no casaco de uma menina que queria se matar.
Alguém dirá que tanto faz: de qualquer forma, acasos como o encontro de Gregorius com o livro de Amadeu são raros, se não únicos. Concordo, mas cuidado, os caminhos da liberdade são infinitos, mas passam por nós como cavalos encilhados: poucas vezes ao longo de uma vida.