Carola é uma menina de três anos que acaba de descobrir seu amor pelos tratores. Mora desde julho de 2020 em Arboleya, uma aldeia asturiana, na Espanha, de 30 habitantes. Antes morava em Tetuán, um bairro de Madri de 161.000 moradores. Seu irmão, Tomé, tem seis anos e gosta da aldeia porque aqui pode brincar. Hoje comeu ensopado. Faz frio e Tomé sopra com um canudo bolhas de sabão ao ar limpo de inverno.
— Em Madri você também podia brincar.
— Sim, mas aqui posso sair sozinho para brincar.
Em Ollauri (302 habitantes; na região de La Rioja) a escola reabriu com a chegada de várias crianças. Héctor, um garoto de longos cílios e olhos de alma profunda, é um deles. Tem nove anos e morava no décimo andar de um prédio em Alcorcón, na região metropolitana de Madri. Durante a pandemia seus pais precisaram levá-lo ao psicólogo porque acreditava que iria morrer. Em setembro se mudaram ao povoado. Em uma manhã de dezembro, estava em sua carteira com seus novos colegas de escola fazendo uma árvore composta de cartolinas em que escreviam seus pedidos de Natal.
— O que você pediu?
— Que ninguém de minha família morra. E em segundo, o Cortex Challenge, um jogo de memória.
Era uma noite de outubro quando Samara chegou com seu pai desempregado da cidade de Valência a Villerías de Campos, uma localidade de 60 moradores. Daquela noite lembra que, à medida que se aproximavam de carro, tudo estava escuríssimo e estava hipnotizada pela estranha piscada vermelha dos moinhos de vento. Tem 12 anos. No começo temia que a integração no colégio demorasse, mas foi tudo bem. Estuda no Jorge Manrique de Palencia, a meia hora de carro.
— Quem foi Jorge Manrique?
— Não sei. É que acabei de chegar…
— Você pode procurar no Google, por favor?
— Sim, deixa eu chegar perto da janela para pegar sinal – diz em seu quarto, celular nas mãos.
Tecla e lê que “Jorge Manrique foi um poeta castelhano do Pré-renascimento e um homem de armas”.
El Frago (50 habitantes, Zaragoza) foi fundado no século XII por Alfonso I, o Batalhador. Os uruguaios Verónica Giacoboni e Santiago Campiglia chegaram em setembro vindos da costa levantina. Têm duas cachorrinhas idênticas da raça Jack Russel que somente eles conseguem diferenciar: Mila e sua filha Arya, chamada assim pela corajosa heroína de Game Of Thrones que matou o Rei da Noite.
Em 21 de junho acabou o primeiro estado de alarme na Espanha, a fase mais dura da quarentena, que praticamente proibiu a saída de crianças e adolescentes às ruas e limitou às atividades essenciais a saída de casa dos adultos. Cinco dias depois, Alona e Alberto subiram em seu trailer e deixaram sua casa geminada alugada na serra de Madri para começar uma nova vida em uma antiga casa de campo em Muras (Lugo), uma localidade de 642 moradores que desde meados do século XX perdeu 80% da população. Passaram a primeira noite em uma barraca no quintal. De madrugada ouviram lobos. Para afugentá-los colocaram música eletrônica.
Ana Moreno e Julio Albarrán, os pais de Tomé e Carola, já tinham pensado em mudar para o campo antes de que “tudo isso” acontecesse. “Tudo isso” foi o que precipitou a operação ou, nas palavras de Ana, “o necessário e definitivo chute na bunda” para levá-la por fim a se mudar da capital espanhola a um local tranquilo como Arboleya.
Quanta gente terá feito o mesmo desde março? De onde, para onde, quais os motivos?
Não temos a menor ideia. O que existe são indícios que não sabemos se podem ou não significar o marco de um processo que deveria ocorrer na Espanha: o equilíbrio estrutural —e espiritual— entre o urbano e o rural em um país que concentra 41 de seus 48 milhões de habitantes em 30% do território.
O fenômeno não está restrito à Espanha. Com a recomendação da adesão ao homeoffice para todos os setores que podem evitar a volta aos escritórios, no Brasil, também cresceu o número de pessoas que fugiram para a zona rural, como mostrou uma reportagem do correspondente em Brasília Afonso Benites, publicada em julho de 2020. Sem escolas para os filhos e confinados em apartamentos, os brasileiros que moram em grandes cidades —com condições financeiras para fazê-lo— optaram por fugir para o meio do mato, nem que fosse temporariamente.
Há indícios subjetivos que embasam esse fenômeno do êxodo urbano na Espanha e em grande parte do mundo moderno —como a felicidade descrita por aqueles que puderam viver esta transformação. E há os objetivos, mas pontuais: na Espanha, várias prefeituras de pequenos municípios aproveitam a oportunidade para tentar a atrair população jovem com boa Internet; há também dados que apontam, no país europeu, o aumento da procura de casas em municípios espanhóis com menos de 5.000 habitantes, como mostra o site Idealista (14,8% do total em novembro contra 10,1% em janeiro de 2020); e o total de pedidos registrados pelo Projeto Arraigo para se mudar a um povoado: 2.000 em 10 meses, o mesmo que nos quatro anos anteriores, quando foi criada a iniciativa de ajuda à repovoação. O Instituto Nacional de Estatísticas da Espanha disse ao EL PAÍS que pretende estudar nos próximos meses os movimentos de população da cidade ao campo ocorridos durante a pandemia. Análises como essa parecem indispensáveis para fundamentar as estratégias da Secretaria Geral para o Desafio Demográfico, criada em 2020; o órgão ad hoc de maior importância na história do Governo espanhol.
Um morador da aldeia de Arboleya passa pela rua.
— O senhor acha que o campo ganhará nova vida?
— Não há outro caminho — responde.
Há vários farores que justificam a fuga para o campo. Mais contato com a natureza, menos contato com os problemas das grandes cidades (mais caras, mais desiguais, mais saturadas), deixar o vício dos celulares e toda essa convulsão existencial que vem sendo o século XXI e que deixa o ser humano sem poder respirar. Sem poder respirar de ansiedade e sem poder respirar pelo vírus, que parece a materialização patógena de nosso tempo.
Os irmãos Carola e Tomé têm uma amiga que se chama Selma que mora no povoado vizinho. Selma morou na Cidade do México, e ainda que lá adorasse ir ao cinema —como esquecer a tarde em que viu Zootopia, protagonizado pela coelha policial Judy Hopps—, acha que aqui há uma coisa da qual ela gosta ainda mais: “O ar puro”.
Ana e Julio, artista têxtil de 40 anos e fotógrafo de 37, se sentem seguros da decisão que tomaram. “Viemos com dúvidas, mas isso é incrível. Às vezes fico boba olhando pela janela e me pergunto se algum dia me cansarei”, diz ela em sua confortável casa, pela qual pagam 400 euros (2.600 reais) por mês de aluguel com vista aos Picos da Europa, uma região paradisíaca no norte da Espanha. “Mas sabe do que sinto falta?”, acrescenta. “De vez em quando, um lanchinho do Burger King.”
As terras da área rural do município de Haro, em La Rioja, são ocres, marrons, avermelhadas. Têm a gravidade metafísica de uma tela de Mark Rothko ou do Perro semihundido de Goya, e dão vinhos ótimos. “Aqui você compra por 80 centavos (5 reais) um copo de vinho que em Madri custaria três euros (20 reais)”, diz Javier Ruiz na praça de Ollauri, o povoado do qual sua mãe escapou para migrar para a cidade nos anos sessenta e ao qual ele retornou com sua família fugindo justamente da cidade grande. “Jamais pensei que poderia vir morar aqui…”, diz diante da fachada de uma casa majestosa cujos escudos seu avô pedreiro Carmelo talhou em arenito.
Foram muitas semanas com os quatro enfiados no apartamento com as notícias da pandemia. Héctor começou a dizer que não queria comer, que tinha uma espinha na garganta que não iria sair. O médico lhes explicou que era pura angústia. Passaram o verão em Ollauri na casa da falecida avó de Javier e o garoto melhorou. Em setembro voltaram a Alcorcón para o começo do ano letivo, mas entraram em pânico ao voltar a ficar confinados lá. Mudaram a matrícula de Héctor ao colégio de Ollauri e a de sua filha Paula, de 13 anos, ao colégio de Haro. Para aproveitar o espaço do carro, em vez de usar malas, Leticia Garcia propôs a seu marido apertar a roupa em sacos de 30 litros.
— O que sentiu ao ver tudo assim em sua casa?
— Alegria —responde Héctor.
De Madri sente falta do metrô e dos trens. Aos domingos seus pais o levavam de metrô à estação de Atocha e lá, de uma passarela, via as chegadas e saídas do AVE (trem de alta velocidade espanhol). Mantém o bom inglês aprendido em seu colégio bilíngue com duas horas semanais de conversa remota com crianças de outros países dirigidas por um professor das Filipinas.
A estudante Paula não tinha muito o que falar sobre a mudança ao povoado, ainda que a única coisa que realmente a incomodasse era se distanciar de sua amiga Andrea. Mas a vida em Alcorcón, para ela, não tinha grandes atrativos: “Lá não tinha nada para fazer além de ficar em casa lendo e tocando piano”, diz. Aqui fez amizades e usa menos o celular, o que não a impede de seguir todos os dias no TikTok @payton, um influencer de 17 anos de quem gosta especialmente “do seu cabelo”.
Na cidade de Alcorcón sua mãe era cabeleireira em um asilo. Com a pandemia entrou em processo de regulação temporária de emprego (ERTE, na sigla em espanhol). Entre Ollauri e seus arredores não demorou a encontrar trabalho tomando conta de idosos em domicílio. Por enquanto, Leticia prefere sua nova vida. Acha que na cidade “as pessoas só cuidam de si.” Quando já estavam há algumas semanas no povoado, sua mãe morreu e ela se sentiu acolhida pelo carinho dos moradores.
A fibra ótica chegou aqui no ano passado. Graças a isso, Javier trabalhe para sua empresa de Madri da sala de jantar de sua avó Constantina. Escreve códigos sobre a mesma toalha de borracha que existia quando o levavam quando criança ao povoado e comiam feijão-branco. Equipado com um notebook e um monitor, junto com o mouse sem fio que acaba de receber pelo correio e dois periquitos em uma gaiola, se sente “super bem” nesse recinto, ainda que precise se lembrar de tirar de cima de um móvel um apavorante esquilo empalhado do qual avó gostava muito.
— Mamãe, me traz leite com cereais?
— Os cereais acabaram, quer um achocolatado?
— Tudo bem, mas coloca bastante açúcar.
David é o mais velho. Tem 15 anos e é o que menos queria mudar de Valência a esse povoado ventoso chamado Villerías de Campos. Gostava de andar por aí com seus colegas, com seu look de calças justas e casaco prateado brilhante. “Nos primeiros dias aqui fiquei muito abatido”, diz. “Ficava sozinho o dia inteiro e não saía de casa. Mas estou me acostumando.” David é um jovem de agudo senso estético, e uma coisa que lhe frustrou ao chegar foi que no vilarejo de Palência não cortaram seu cabelo como pediu. “Cortaram inteiro, e eu queria um degradado com franja curta na frente”.
Samara, a segunda, gosta do fato de que em Villerías não existem tantos carros e tanto barulho como em Valência “e isso é legal”, e de Valência gostava do verão e das Fallas —uma festa típica valenciana, que ocorre em março—, “porque está tudo cheio de gente”. A terceira, Tatiana, de 10 anos, acha que sua cidade era “muito bacana porque havia muitas meninas”, ainda que em sua classe em Ampudia – ao lado de Villerías – tem uma colega de quem gosta muito porque se parece com Lucía, sua melhor amiga de Valência, “e temos os mesmos pensamentos”. No povoado seus locais favoritos são “o tanque das rãs” e a quadra de futebol de cimento, onde joga partidas com seus pais e seus irmãos, entre eles a mais nova, Carmen, de cinco anos, que insiste em ser entrevistada como os outros e diz de um fôlego só “Eu gosto de brincar quando tem vento, mas não posso gostar porque podemos ficar gripados”.
Tatiana Arenas tem 33 anos e seu marido, David García, 35. Ela era cozinheira de um restaurante e entrou em ERTE em março. Ele não conseguia um emprego fixo desde que há dois anos perdeu seu trabalho em uma filial da empresa de frutas secas Churruca. “Enviava à Turquia contêineres de sacos de kikos (grãos de milho tostados)”, diz. “Os turcos adoram kikos”. Conta que passou os primeiros meses da pandemia ajudando em pequenas reformas e em uma oficina mecânica para somar com o que recebia sua mulher e alimentar seus filhos. Deixaram de pagar o aluguel. Um dia, Tatiana teve a ideia de procurar informação sobre povoados que precisavam de famílias e encontrou o Projeto Arraigo. A empresa de vocação social dirigida por Enrique Martínez e seu filho Juan, ambos engenheiros, os colocou em contato com Mariano Paramio, prefeito de Villerías, produtor de um delicioso queijo de ovelha e homem com um único objetivo: “Que nosso povoado seja um povoado vivo”. Paramio vivenciou em sua infância o êxodo rural e afirma que mais de meio século depois está surgindo “uma mudança de percepção” daquele traumático repúdio ao campo rumo a sua valorização. Os filhos dos que se foram, raciocina, estão vindo mais de férias e até reformando as casas porque veem como as crianças gostam – ou seja: os netos e bisnetos dos que migraram às cidades pelo bem de seus filhos –. “É como uma espiral que, muito lentamente, começa a girar ao contrário”, observa.
O povoado de Villerías havia acabado de reformar a antiga casa do padre e David e Tatiana tinham quatro filhos: uma bênção em um país em cujas zonas rurais os menores de 15 anos são 12,4% da população, os maiores de 65, 23,8% e a taxa de envelhecimento aumentou 30% nos últimos anos, segundo dados oficiais. Alugaram a casa à família por um preço baixo e lhes deram trabalho, ele de funcionário da Prefeitura e ela responsável pelo bar do povoado. Tatiana chegou com as duas meninas mais novas em um carro alugado cheio de malas e com o leite, os legumes, a linguiça e o frango oferecidos antes de sair por seu pastor evangélico de Valência. Exímia cozinheira, em Villerías de Campos aprendeu a cozinhar sopa de alho, recupera o tempo que antes não pôde dedicar aos seus filho . “Eu sofri muito nessa vida, e como acredito em carma sempre pensei que algo muito bom deveria acontecer comigo. Imaginava que seria a loteria ou algo assim: mas outro dia disse a David: ‘E se era isso que deveria acontecer conosco?.”
Enquanto Javier Ruiz, em Ollauri, tem a sorte de contar com “fibra óptica de 100 megas”, José Ramón Reyes carrega a cruz de uma cobertura precária para seu povoado, El Frago, um precioso enclave medieval erigido sobre um penhasco de rocha aragonesa. Filiado ao Partido Comunista desde os 14 anos, o prefeito reflete em uma manhã de domingo: “Se Marx viu o potencial da eletricidade para mudar o mundo, imagine o que teria dito da Internet”. São dez da manhã, e no bar soam os sibilos da cafeteira manejada por Santiago Campiglia.
Ele e sua esposa, Verónica Giacoboni são uruguaios. Saíram de Montevidéu em 2018. Na periferia as coisas estavam ficando feias, e não aguentaram mais quando assaltaram a mãe dela. “Foi agredida com um ferro na cabeça e perdeu três dentes”, diz Verónica. Emigraram à Espanha e trabalharam no turismo em Xàbia até a pandemia. Ficaram sem renda e com um aluguel dispendioso. “A única ajuda que entrava em casa eram 30 euros (200 reais) por mês da Prefeitura para comprar no supermercado Masymas”, diz Santiago. Através do Projeto Arraigo tiveram a possibilidade de ir para El Frago com um aluguel acessível e trabalhando no bar da mãe do prefeito. “E os moradores nos receberam muito bem”, diz ele. Os clientes são sempre os mesmos e em apenas dois meses o Bar 4 Reyes funciona como se os uruguaios sempre estivessem no comando. Sabem, por exemplo, que Domingo só bebe cerveja sem álcool e que Eladio, o pastor de cabras, gosta de Fanta laranja em copo alto “e com uma dose de vinho”.
Verónica e Santiago estão “felizes”, ainda que passem o dia inteiro no bar. Quando pode, ela gosta de tricotar e tirar uma soneca. Ele avalia que sua economia doméstica agora é mais sustentável. E também que o ar é “excelente” e sente que se oxigena muito bem quando vai correr. Antes de entrar nos bosques, isso sim, perguntou se havia ursos. Eladio se transformou em seu professor das coisas do lugar e uma tarde o levou para ensinar-lhe quais são os cogumelos comestíveis: “O níscaro, os cogumelos-do-cardo, os cavaleiro-cinza…”, diz o pastor.
Além dos uruguaios, em El Frago chegaram em outubro Nando González e Noemí Abad, um casal de Santander —entregador de encomendas e professora particular de inglês— cansado da cidade e assustado com o vírus porque ela tem asma. “Eu não aguentava mais”, confessa Nando, que, bem agasalhado e com seu copo de bebida nas mãos na praça Mayor, emana plenitude.
Outra moradora desde meados de 2020 é Marina Joven, uma terapeuta ocupacional cujos avós compraram há tempos uma casa em El Frago. Ela gostaria de ficar, mas como trabalha com seus pacientes acha que precisará voltar a Zaragoza. Marina anda de cadeira de rodas por uma algodistrofia, doença neurológica que causa fortes dores. Um dos benefícios do povoado, diz, é que depois de cada surto se recupera antes. Fala do poder de cura do silêncio, de dormir melhor, de como um vizinho bate em sua porta para ver como está, de que a cabeça está “a 2.000 por hora, como sempre”, mas tendo a natureza ao lado para sair um pouco para meditar, e do som da geada “degelando de manhã”.
— É uma utopia se mudar ao campo?
— Hoje, sim —responde no bar—, mas minha geração se interessa cada vez mais e a administração leva isso em consideração. Eu sou das que acham que a sociedade avança, e penso que estamos nesse rumo.
Marina deu palestras na pequena El Frago sobre igualdade de gênero e teve seus desentendimentos com a mãe do prefeito, Celia, conservadora ainda que inimiga do machismo. Santiago, que no Uruguai fazia kickboxing, deu um curso de defesa pessoal e Celia diz que aprendeu a golpear um possível agressor “para deixá-lo atordoado”. Lembra quando a população daqui era 10 vezes maior do que agora e na escola estudavam em classes separadas, com trabalhos domésticos para as meninas e na horta para os meninos. Nos anos sessenta, conta, “surgiram os tratores e as máquinas e já não era preciso tanta mão de obra, e muita gente foi para a França e Zaragoza. Muitos homens ficaram porque tinham um pedaço de terra e estavam muito arraigados, mas as mulheres saíram para trabalhar, e com tanto solteiro veio esse despovoamento tão grande que temos”, conta. Ela acha muito difícil que El Frago volte a ser um local tão vivo como quando era menina, ainda que seu filho esteja “fazendo o impossível”. Os moradores recuperaram a abadia e José Ramón prevê que em breve um casal de Soria com sete filhos se instale nela. Além disso, espera que venha um casal de Sevilha com outros quatro filhos. O prefeito logo poderá reabrir a escola, seu desafio número um. “Sem crianças não há povoado”, afirma com sua camiseta do Che Guevara.
Verónica Giacoboni tem uma nova clientela para tentar levar sua proposta além dos hambúrgueres e pizzas artesanais. “É difícil com os mais velhos. Estranham se sirvo macarrão com almôndegas. Dizem: ‘Primeiro o macarrão, depois as almôndegas’. O zucchini (abobrinha) também, se o coloco no suflê, porque o tomam na sopa. Comecei a fazer pão de ló e não o comiam, porque segundo eles só é feito para aniversários; mas então o usei para fazer bolinhos e agora sim o comem mais com o café”. Verónica faz um esforço intercultural para combinar a cultura uruguaia com a local.
Alona Litovinskaya mostra no celular as fotos de quando era uma executiva com saltos agulha.
— I was like a bullet —sorri. Como uma bala.
Um bom tempo depois disso ela conheceu Alberto Pérez Gordillo em um festival de música trance em Las Hurdes. Ele a viu, lhe perguntou se tinha fogo e ela disse que sim; de modo que assim nasceu em 2018 esse casal improvável: ele de Mérida e ela de Cazã, na Rússia.
Procurando campo, foram juntos a Miraflores de la Sierra, mas a vida em uma casa geminada a uma hora de Madri não os satisfez e, em 2019, saíram com seu trailer para procurar “algo selvagem” pelo norte da Espanha. Andando pela Galícia, viram em um site o anúncio de uma casa rural desabitada há anos, a visitaram e para eles tinha tudo: acesso por uma estrada pavimentada, água de uma nascente que sai ali mesmo de algumas rochas, documentação em dia e nenhum outro humano em um raio de um quilômetro. Não se importaram por aquilo estar “quase arruinado”, como Alberto define. Compraram e voltaram a Miraflores com a ideia de ir reformando a casa com calma, mas seu plano gradual foi pelos ares com o confinamento e quando puderam foram para Muras. Estão há meio ano nessa casa rural do século XIX, situada no topo de uma ladeira verde que dá em um pequeno riacho e que só tem uma casa perto, abandonada há décadas e na qual Alona sente a “presença de energias”.
— Isso era um caos quando chegamos — diz —. Agora também é um caos, mas um caos habitável.
– Alona e Alberto no pátio de sua casa, em um local remoto da Galícia. THE KIDS ARE RIGHT
Hoje já conseguiram arrumar melhor, com alguma goteira, a parte onde estava o palheiro. O colchão fica direto no chão envolto em edredons: dois na parte de cima, um embaixo. Eles se esquentam com um fogão à lenha. Têm uma boa linguiça e bons queijos da região. O que não têm é boa Internet. Alberto, técnico de som, pendurou no varal da varanda uma sacola do supermercado com um celular velho que serve de antena e capta o sinal do 4G, e por bluetooth conseguem cobertura dentro. Alona diz que se em locais como esse existisse uma conexão de qualidade seus amigos techies de San Francisco, onde morou depois de Cazã e Moscou, ficariam felizes. Ela tem a esperança de montar em volta da casa “projetos de música imersiva”. Ele, que ficou sete anos trabalhando em Barcelona e seis em Madri, deseja poder sustentar sua vida aqui quando “tudo isso” passar, “talvez saindo por temporadas para trabalhar na cidade.”
Adoram estar no meio do nada e ter a alguns minutos a sede do município. Vão frequentemente fazer compras e comer no café restaurante O Santi, que tem um soberbo menu de 10 euros (65 reais) e também recebe as encomendas do correio. Hoje Alberto comeu lentilhas de entrada e bacalhau com cebola, e Alona salada e, de prato principal, filé de merluza com batata cozida. Além disso, ela voltará para casa com um colete que comprou pela Internet e ele com uma motosserra de gasolina que encomendou pela Amazon. Para Jeff Bezos, não há lugar ermo e distante o suficiente.
Fonte: EL País
Créditos: EL País