A fama dos Beatles

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Nonato Guedes

Relendo a reportagem de Maureen Cleave, publicada no “Evening Standard” de quatro de março de 1966, ponho-me a divagar se John Lennon realmente cometeu uma heresia ao dizer: “Hoje somos mais populares do que Jesus Cristo”. A matéria, é claro, integra o Grande Livro do Jornalismo, editado por Jon E. Lewis, reproduzindo 55 obras-primas dos melhores escritores e jornalistas, de Charles Dickens a John dos Passos, passando por George Orwell e Gore Vidal. Na introdução ao texto de Cleave, lê-se que a declaração de Lennon incitou uma ira furiosa no “Cinturão da Bíblia” no sul dos Estados Unidos.

Ele foi forçado a fazer uma retratação humilhante, que nunca esqueceu ou perdoou. Há quem diga que foi o começo do fim dos “Quatro Fabulosos”, porque eles nunca mais se apresentaram em público depois que a bomba estourou nos fanzines americanos em 1966. O deslumbramento de Lennon tinha lá sua justificativa. A própria matéria polêmica abre dizendo: “Os Beatles agora são as pessoas mais conhecidas no mundo de língua inglesa. São tão famosos quanto a Rainha. Quando o Rolls-Royce de John Lennon, com suas rodas pretas e seus vidros escuros passa, as pessoas dizem: ‘é a Rainha’ ou ‘são os Beatles’. Com ela, eles partilham a segurança de uma vida estável. Mas todos mantêm a admiração do público – ela no Palácio de Buckingham, eles na área de Weybridge-Esher. Somente Paul permanece em Londres”.

Lennon, de fato, exagerou no tom. Pontuou o seguinte: “O Cristianismo continuará. E depois desaparecerá. Não preciso argumentar sobre isso; estou certo, e verão que estou certo. Hoje somos mais populares do que Jesus Cristo. Não sei quem desaparecerá primeiro: o rock’n’roll ou o Cristianismo. Jesus era legal, mas seus discípulos eram grosseiros e ignorantes. Foram as alterações que eles fizeram que arruinaram tudo para mim”. Lennon estava lendo muito sobre religião, como narrou Maureen, acrescentando que ele estava comprando bastante na Asprey e possuía algumas excelentes garrafas de vinho em sua adega, mas ainda continuava um pouco desinteressado. “É muito preguiçoso para manter as aparências, mesmo se tivesse trabalhado a respeito de como elas devem ser, o que não fez”, prosseguia Maureen. O beatle estava com 25 anos. Vivia com a esposa Cynthia e o filho Julian, de três anos. Yoko Ono não havia aparecido na sua trajetória.

O cenário habitado por Lennon não combinava com o teor da frase que foi a maldição dos Beatles. Na sala de visita, por exemplo, havia oito pequenas caixas verdes com luzes vermelhas piscantes. Ele as comprara como presentes de Natal, mas nunca saíra para distribuí-las. Elas piscavam por um ano. “Podemos imaginar John sentado ali até o Natal seguinte, rodeado pelas pequenas caixas piscantes”, especulava Maureen. Em meio à entrevista, Lennon parou diante de objetos que apreciava: um enorme crucifixo católico de altar com as letras IHS, um par de muletas, presente de George, uma Bíblia enorme que ele comprou em Chester; sua fantasia de gorila. Tudo muito franciscano, inocente como uma criança que ganhou um brinquedo de estimação para toda a vida. Era ávido em relação a livros. Sempre pedia uma indicação de leitura. Comprava grandes quantidades, mantidas arrumadas em uma sala especial. “Encontramos Swift, Tennyson, Huxley, Orwell, edições caras em capa de couro de Tolstoi, Oscar Wilde. E vemos “Mulherzinhas”, todos os livros de William Brown da sua infância e alguns volumes inesperados como Forty-One Years in Índia, do marechal-de-campo lorde Roberts e Curiosities of Natural History, de Francis T. Buckland. Este último com os títulos dos seus capítulos – “Gatos sem orelhas”, “Pessoas com pernas de madeira”, “A mãe imortal de Harvey”.

Lennon abordava a leitura com um velho interesse destemperado por uma educação muito formal. “Já li milhões de livros, por isso pareço saber das coisas”. Era obcecado pelos celtas. “Decidi que sou um celta. Estou do lado de Boadicea, todos aqueles sanguinários, louros de olhos azuis retalhando as pessoas. Gostaria muito de ter estado lá – não com os patifes e as feridas, mas lá através da leitura. Os livros não lhe dão mais do que um parágrafo sobre como eles viveram; tenho que imaginar essa parte”. Não escondia seu horror mórbido a pessoas estúpidas. Famoso e cheio da grana, como estava, não surpreende que tenha cometido excessos, não apenas os verbais. A lástima se deu na infelicidade da comparação com Cristo. Foi impertinente, vamos combinar assim!