QUATRO ESTUPROS DE MENINAS POR HORA

A CULPA NÃO É DO BOTO Como uma lenda indígena foi associada a casos de estupro no Pará

“Sabe a lenda do boto? Que no passado a gente ouvia falar que lá na região ribeirinha as pessoas acreditavam que o boto engravidava menina? A história do boto é uma grande farsa. Era o pai que engravidava a menina e botava a culpa no boto”, afirmou a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves à TV Brasil em agosto do ano passado.

A ministra falava ali sobre os altos índices de abusos sexuais registrados no Pará, em especial no Arquipélago do Marajó, onde estão concentrados alguns dos mais baixos índices de desenvolvimento humano do país. Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil, com informações do Censo, 14 dos seus 16 municípios estão na lista dos piores lugares para sobreviver.

Foi nesse conjunto de ilhas que surgiram, a partir do século 18, as primeiras histórias do boto encantado. Nas fábulas, o animal, ao cair da noite, transforma-se num homem dançante, alto e forte, trajando terno branco e chapéu, que seduz mulheres e, antes da madrugada, pula para a água e volta à forma do mamífero. Contada tantas vezes desde então, e de diferentes formas, de alguma maneira a lenda desaguou em narrativas machistas e criminosas — e acabou usada para acobertar crimes de estupro e incesto.

Universa conversou com especialistas, historiadores e ativistas na região para tentar explicar como folclore e estupro desembocaram numa mesma correnteza, por que o Pará amarga décadas num histórico de exploração sexual e violência contra crianças e quais as perspectivas de mudança nesse quadro. Você acompanha aqui, ainda, o relato de uma menina que foi estuprada dos 11 aos 15 anos pelo próprio pai — um caso que, infelizmente, não é isolado.

O QUE É A LENDA DO BOTO?

Os botos cor-de-rosa, vermelho e preto são animais típicos da região amazônica, classificados como seres encantadores e inteligentes, com poder de sedução a todos que se aproximam. É assim que Luís da Câmara Cascudo define o animal em seu “Dicionário do Folclore Brasileiro” (1954). E foi a partir desses adjetivos dados aos cetáceos que surgiram tradições como usar algumas partes do corpo do boto como solução para vários males. Assim, o olho já virou talismã; a carne, “cura” da lepra, e vários outros pedaços transformaram-se em “patuás”.

Foi o etnólogo e folclorista José Vieira Couto de Magalhães um dos primeiros a registrar as lendas desse mamífero. Na sua obra “O Selvagem” (1876), ele cita o Uauyará ou Uiara, ser que se transformaria no boto e que em tupi-guarani significa “o senhor, a senhora das águas”. Em suas palavras, esse deus seria um grande amante das índias, que ora as surpreendeu no banho, ora se transformou na figura de um mortal para seduzi-las, ora as arrebatou para debaixo d’água, onde a infeliz teria sido forçada a entregar-se a ele. Por isso, ele acrescenta, muitas delas atribuem seu primeiro filho à sua esperteza.

Mas também há uma versão feminina do boto. O naturalista inglês Henry Walter Bates, que passou 11 anos coletando espécimes na floresta amazônica, a partir de 1848, escreveu sobre o boto tomar as formas de uma bela mulher, que seduzia os rapazes e levava-os para a água.

O historiador Márcio Couto Henrique, professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA), afirma não ser possível localizar a origem cronológica do mito do boto. O que pode ser feito, ele diz, é localizar no tempo o surgimento do folclore, da folclorização dos mitos indígenas: isso começou a ocorrer a partir da segunda metade do século 19.

 

Fonte: UOL
Créditos: UOL