A conjura dos libertos

Rubens Nóbrega

A Corte foi convocada para uma reunião de emergência em pleno domingo. Convocação assinada pessoalmente por Sua Majestade, mas sem pauta definida, o que só fez aumentar a tensão e ansiedade entre os convocados.

O temor só fez aumentar quando o rei instalou a plenária e declinou o propósito da convocação: estavam ali para discutir a crescente onda de otimismo que de uma hora pra outra tomou conta do reino. Com o agravante da fé na vida, fé no que virá.

O rei comunicou que espiões infiltrados no meio do povo e nas repartições imperiais reportaram comportamentos estranhos, falando de pessoas que de repente começaram a sorrir, algumas cometendo criminosas gargalhadas em público.

“A maioria já não anda mais falando pros lados e olhando pro chão. Imaginem se esse povo se acostuma a olhar pra frente, a andar por aí de cabeça erguida. Vocês por acaso têm ideia do perigo que isso representa?”, indagou o monarca.

“Representa uma conspiração, amado soberano, uma conjura em larga escala para derrubar o Estado de Espírito decretado, fragilizar o seu governo e adiante derrubar Vossa Majestade”, observou o Grão-Duque de Manaíra, Geisel e Mangabeira.

Antes que o influente nobre prosseguisse, Sua Alteza Real, a Consorte, ergueu a mãozinha esquerda e pediu a palavra para dizer que acabara de tuitar uma advertência à plebe rude e ignara. Disse que escrevera assim: “Vocês vão ver o que é bom pra tosse se ousarem derrotar a Marquesa de Eletrolândia nas eleições do Ducado Principal!”.

A Condessa de Ará e o Barão do Sabugy puxaram uma salva de palmas. A ovação foi tamanha que a Consorte, lisonjeada e comovida, levantou-se da cadeira ao lado do trono para graciosas mesuras de agradecimento. Mas tão ruidosa manifestação foi imediatamente repreendida e reprimida pelo imperador.

“Como ousam alegrar-se dessa forma na minha presença?”, indagou o absoluto, furioso, brandindo o cetro real na direção da assembleia. “Qual parte vocês não entenderam do édito do Estado de Espírito?”, inquiriu a todos, trêmulo de ódio, ódio que dava pra ver na baba que lhe escorria pelo canto esquerdo da boca biliosa.

A Consorte tentou acalmar o maridão, coçando-lhe as costas, afagando-lhe a juba grisalha, pedindo desculpas baixinho por ter provocado aquela reação. Como que se rendendo aos carinhos, o Inatingível se remexeu no trono, procurando posição mais confortável, dando a entender que aplacara um pouco a furiosidade.

Mesmo assim, chamou o arauto e ordenou-lhe ler para todos e todas os dispositivos inaugurais e cruciais do decreto, assim redigidos:

Art. 1º – Por este Decreto, declaro abolidas, a partir desta data, a alegria, a fraternidade, a compreensão e a solidariedade entre os plebeus do Reino, ao mesmo tempo em que crio o Estado de Espírito sob o domínio do Baixo Astral em todo o território e propriedades da Coroa.

Parágrafo único. Membros da Coroa e nobres ficam igualmente impedidos de manifestar os mesmos sentimentos publicamente, de modo a evitar que a plebe perceba que somente a Realeza e a Nobreza estão se dando bem nessa história e desfrutam e fruem do bom e do melhor do poder.

– Estão vendo aí, seus idiotas, seus imbecis, seus burros? Se vocês começam a sorrir, a bater palmas, a dar vivas e fiu-fiu por qualquer besteira, isso se espalha e aí é que esse povo vai querer ver a nossa caveira! – explicou Sua Majestade Imperial.

– Mas, Amado, estamos praticamente em família, aqui. Não tem ninguém de fora… – ousou argumentar o cavaleiro encarregado das coletas e adjutórios em geral, argumento fulminado pelo Infalível com as seguintes palavras:

– Não seja tolo, Sir Coletor, há sempre alguém infiltrado ou insatisfeito, mesmo em nosso círculo mais íntimo – corrigiu o Inexcedível, fazendo jus à fama de sujeito que duvida ou teme até a própria sombra.

– O que fazer, então, Insuperável? – perguntou o Visconde da Serra, responsável pelo Decobre, o Departamento de Contratação de Obras Rentáveis.

– Se me permitem, acho que deve ser baixada uma nova MR (Medida Real) impondo penas e castigos mais duros aos servidores que se atreverem a sorrir em pleno expediente. Acho, inclusive, que deva ser estabelecida uma gradação para as penas e castigos – propôs o Conde Melé, jurista responsável pela Instrução Geral.

– Como assim? Como é essa história de gradação? – quis saber o Incontestável.

– Simples. Para um sorriso discreto pego em flagrante, podemos confiscar alguma gratificação incorporada. Para um sorriso mais aberto, desses que mostram os dentes, uma redução no salário com aumento de jornada e se for uma risada ruidosa, de chamar a atenção, uma transferência pros cafundós. Tudo no interesse da Administração, claro – explicou o Instrutor Geral.

– Justo, muito justo, justíssimo, mas será que passa no Parlamento? Sabemos que a nossa bancada não é confiável, tanto que pra aprovar qualquer coisinha pede um montão em troca. E eu já tou de saco cheio desse jogo! – exclamou o Indefectível.

– Faça por decreto, então, Majestade. O máximo que pode acontecer é algum beócio da oposição entrar na Justiça. Mas lá tem boquinha não – atalhou o Grão-Duque.

– Tá decidido. Prepare o decreto e deixe de sobreaviso o nosso líder de bancada lá no Egrégio. Quanto ao povo satisfeito que for encontrado na rua, vamos estudar uma forma de multar ou excluir dos nossos programas assistenciais. Mãos à obra!
Com essas palavras, o Impagável deu por encerrada a reunião, da qual todos saíram felizes, rindo, mas por dentro, disciplinadamente contidos, pra não dar bandeira nem descumprir a ordem real.