Saia para jantar com um enxaquecoso. Desafio você a encontrar um restaurante em que ele se sinta à vontade para comer absolutamente qualquer prato no cardápio. Não é questão de paladar: quem sofre de enxaqueca leva no bolso, além de analgésicos frequentes, o medo de fazer qualquer coisa que possa acarretar uma crise. E a lista de “gatilhos” é longa. Queijos, vinho, chocolate, embutidos, fermentados, feijão. Glutamato monossódico, presente em temperos em pó.
Fora do campo da dieta, anticoncepcionais hormonais, excesso de calor ou frio, cheiros fortes, jejum prolongado. Noites de sono muito curtas ou longas demais. Tudo isso aumentaria a chance de uma visita da maldita hemicrânia. Uma vida de regularidade e restrições seria o preço a pagar por uma rotina sem dor.
Quer dizer, com menos dor. Volto a desafiar o leitor: pergunte ao seu companheiro de jantar se qualquer mudança de estilo de vida que ele tenha feito foi capaz de resolver a questão. A resposta será “não”. Os gatilhos, afinal, são tão diversos e tão onipresentes que não há como evitá-los. Vejamos, por exemplo, o estresse, um gatilho óbvio. Mas sabe o que também é um gatilho da enxaqueca? O fim do estresse. Não faltam relatos de quem sofre mais com crises nos primeiros dias de férias, por exemplo. Espera aí: então o paciente precisa evitar estresse demais, e também de menos? E precisa passar por tudo isso sem chocolate?
A questão, aqui, remete ao início do texto: a enxaqueca é uma síndrome neurológica de origem genética. “Se você decidir ser monja no Tibete e passar o dia meditando, vai continuar a ter enxaqueca. Se ganhar na Mega Sena também”, resume João José de Carvalho.
Hoje, muito do que os pacientes reconhecem como “gatilhos”, os especialistas afirmam ser sintomas. Tomemos o chocolate, por exemplo, um “vilão” entre os enxaquecosos. Ele já foi oficialmente refutado como causa da enxaqueca (já que, na prática, a causa é você).Mas ainda é possível que a ligação esteja ali, só que de uma forma contraintuitiva.
“No pródromo, 48 horas antes da dor de cabeça surgir, um dos sintomas mais claros é a avidez por doces – mesmo entre pacientes que evitam chocolate porque acreditam que ele ‘causa’ a enxaqueca. Nesse ponto, a crise já começou. O desejo descontrolado por chocolate provavelmente é mais uma característica dela”, diz Carvalho. Quem compartilha dessa visão é um dos maiores especialistas em enxaqueca do mundo, o professor Peter Goadsby, da Universidade College de Londres. Ele defende que reconhecer sintomas do pródromo é mais importante do que evitar supostos “gatilhos”. Esse comportamento, afinal, reduz as chances de o indivíduo ser pego de surpresa pelas crises que, sem dúvida, virão.
A lógica dos gatilhos é sedutora: traz explicações simples e uma sensação de controle. Mas ela não é inofensiva. A tentativa dos pacientes de autoadministrar os gatilhos atrasa a busca por um tratamento adequado, segundo um estudo publicado no periódico Cephalalgia e coescrito por Carvalho.
Se a enxaqueca fosse, de fato, “autoadministrável”, o problema não seria tão grande. A questão é que um paciente com enxaqueca já demora, em média, 11 anos, para procurar ajuda de um especialista. O intervalo costuma ser mais curto quando a enxaqueca apresenta aura. E é cerca de 4 anos mais longo se o paciente acredita que consegue controlar a dor de cabeça apenas “gerindo” seus gatilhos.
Nesse intervalo de 10, 11, e até 15 anos sem tratamento especializado, o diagnóstico pode piorar, e muito. No início da mesma pesquisa, apenas 7% dos voluntários tinham mais de duas crises por mês. Onze anos depois, 40% já sofriam com mais de 15 dias de crise por mês. “Quanto mais você deixar o cérebro aprender a fazer enxaqueca, melhor ele fará”, conclui o neurologista.
A estimativa é que um paciente vai atribuir sua dor a, no mínimo, quatro gatilhos diferentes. E só quando eles falham (ou seja, a pessoa corta o chocolate, o vinho, a pílula, o queijo, e continua tendo crises) é que ela procura alguém para tratar a causa. Nesse intervalo, o cérebro cursa seu Mestrado em Enxaqueca Crônica.
Todas as evidências científicas deixam claro, portanto, que nem a maior disciplina do mundo pode driblar a enxaqueca. Tampouco é possível simplesmente ignorar as crises. Felizmente, a ciência apresenta caminhos – alguns deles muito recentes – que atacam o problema na raiz, e libertam o paciente da exigência de uma vida excessivamente regrada. “Você vai saber que está melhor quando os ‘gatilhos’ não fizerem mais diferença. O paciente em tratamento pode agir como quiser.”
Gatilhos e mitos
53% dos enxaquecosos desconfiam do chocolate.
35% deles acham que é o álcool.
95,7% das crises de enxaqueca não têm relação com nenhum dos gatilhos mais famosos.
Chocolate: Um dos mais famosos vilões da doença é inocente.
Álcool: As dores de cabeça no dia seguinte podem não ter nada a ver.
Glutamato Monossódico: O tempero em pó de salgadinhos e caldos também se safou dessa.
Nitrato: Ninguém sabe se esse nutriente polêmico, presente tanto no bacon quanto em vegetais escuros, faz bem ou faz mal. Mas a enxaqueca ele não afeta.