A bomba e o mistério

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Nonato Guedes

Aproveitando a expectativa da instalação, pelo governador Ricardo Coutinho, da Comissão da Verdade, destinada a apurar violações de direitos humanos, sobretudo no regime militar, não custa lembrar a necessidade de incluir no rol dos casos a serem investigados a explosão de uma bomba no Cine-Teatro Apolo XI, na cidade de Cajazeiras, na noite de 21 de julho de 1975. Duas pessoas morreram, outras duas ficaram feridas. De fabricação caseira, mas de alto teor explosivo, a bomba tinha potencial para matar entre 100 e 150 pessoas se a explosão ocorre com a sala de projeção cheia de espectadores. Persiste o mistério a ser desvendado: de quem foi a autoria do atentado? O artefato, enrolado numa valise verde, foi encontrado próximo à cadeira cativa do bispo dom Zacarias Rolim de Moura, já falecido, que, no entanto, não fora ao cinema de propriedade da diocese. Encontrava-se no Recife, para onde fora selecionar junto a distribuidoras de cinema os filmes que seriam exibidos no Apolo XI. Dom Zacarias era cinéfilo de carteirinha.

O bispo era da ala conservadora da Igreja Católica, o que alimentou a especulação inevitável de que o atentado fora planejado por grupos de esquerda, e algumas figuras de projeção na cidade foram apontadas como suspeitas, entre as quais o ex-deputado João Bosco Braga Barreto, um agitador de massas no sertão paraibano e uma das vozes de resistência contra a ditadura militar. No Cine Apolo XI estava em cartaz “Sublime Renúncia”. Na fita, numa cena de assalto a banco, a atriz Romy Schneider encarna personagem que ao abrir a caixa-forte provoca explosão de bomba-relógio. “Entre arte e realidade, unidas pela bomba, apenas mera coincidência?”, indagou, com percuciência, o escritor Francisco Salles Cartaxo Rolim no seu livro “Do Bico de pena à Urna eletrônica”, em que retrata episódios da história de Cajazeiras, sua terra natal.

As investigações, conduzidas por órgãos de segurança, se chegaram a um resultado conclusivo, nunca se tornaram públicas, apesar da repercussão até internacional do episódio, sucedido numa época de confrontação política e ideológica. Quando a Nova República foi instaurada, com a ascensão de José Sarney (no lugar de Tancredo Neves, que morreu às vésperas da posse), Bosco Barreto anunciou a intenção de representar ao Ministério da Justiça pedindo a reabertura do caso. Ele pegava carona na onda de indignação provocada por outros atentados que pipocaram no fastígio do regime militar, o mais contundente deles o do Riocentro, quando uma bomba explodiu no colo de um militar destacado para uma operação terrorista durante um espetáculo artístico-musical. Houve, também, explosão de uma bomba na sede da OAB, matando uma funcionária. O regime se debatia entre o derradeiro acerto de contas envolvendo a linha dura e a facção mais flexível, adepta da liberalização política.

Nos últimos anos, na Assembléia Legislativa, com a retomada da discussão sobre o assunto por parte do escritor Frassalles Cartaxo, o deputado José Aldemir Meirelles, representante de Cajazeiras e do sertão naquela Casa, propôs que a investigação fosse reaberta e que os fatos fossem elucidados definitivamente, sepultando uma página obscura na história de Cajazeiras e do país. As articulações nesse sentido não progrediram, todavia. Os órgãos policiais remanescentes do regime militar preferiram manter a cortina de fumaça em torno da explosão da bomba no Apolo XI. Não é difícil imaginar que eventuais dossiês de apuração tenham sido atirados na cesta do lixo, talvez por conterem revelações comprometedoras cujo teor é ignorado.

É fundamental que a questão não seja empurrada para debaixo do tapete, como tem ocorrido até agora. Com a vigência da Lei de Acesso à Informação e a criação da Comissão Nacional da Verdade, que inspirou Comissões nos Estados, estão montadas as condições objetivas para um deslindamento da trágica ocorrência verificada na terra que ensinou a Paraíba a ler. Quando a Comissão Estadual for oficialmente constituída pelo governador Ricardo Coutinho, terá que se debruçar sobre uma história que ainda está mal contada e que suscita explorações de toda ordem. Exatamente porque houve relutância em fazer com que a verdade viesse à tona, límpida, sem floreios nem contornos de invencionice.