Quase nove em cada dez médicos relatam terem sido infectados pela Covid nos últimos dois meses ou conhecem outros colegas no ambiente de trabalho que o foram.
Essa alta taxa de contágio faz com que os serviços de saúde de todo o país registrem um grande número de afastamentos. A falta de médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde é apontada como principal deficiência assistencial na atual fase da pandemia (45%). Há um ano, essa era uma queixa de 32,5% dos médicos.
Os dados são de um levantamento da AMB (Associação Médica Brasileira) com 3.517 médicos de todo o país, entre os dias 21 e 31 de janeiro, divulgado nesta quinta (3). A maioria (52,5%) está na linha de frente de serviços públicos e privados que atendem pacientes com Covid.
Segundo César Eduardo Fernandes, presidente da AMB, um outro lado trágico dessa contaminação disseminada entre os profissionais é que os médicos remanescentes acabam trabalhando mais para repor os colegas afastados, sob muito esgotamento físico e mental.
Grande parte dos médicos se declara esgotada (51,1%) e apreensiva (51,6%) com o atual momento. A percepção é que os colegas de trabalho também estão estressados (62,4%) e sobrecarregados (64,2%).
A pesquisa não mediu a percepção dos profissionais sobre o aumento de agressões verbais e físicas no ambiente de trabalho, mas Fernandes diz que esse é fato que tem preocupado a entidade.
“Eu compreendo a insatisfação da população, que espera horas por atendimento, a situação é dramática mesmo, mas a gente não pode aceitar agressões aos profissionais da saúde. Eles estão tão vitimados quanto. O médico está cansado, a recepcionista do hospital está cansada, o maqueiro está cansado”, diz Fernandes.
Outro estudo ainda não publicado do médico Adriano Massuda, professor e pesquisador da FGV (Fundação Getúlio Vargas), mostra que durante a pandemia houve aumento da carga horária nos serviços de saúde, mas sem ter um correspondente no número de profissionais, especialmente médicos.
“Em um sistema de saúde que já estava muito sucateado, sobrecarregado, essa terceira onda da Covid vem como mais um choque nesse corpo fragilizado. É esperado que isso gere todo esse tensionamento que estamos vendo”, diz Massuda.
Outro fato que tem atrapalhado o enfrentamento da Covid na opinião de 86% dos médicos entrevistados pela AMB é a circulação de fake news e de informações sem comprovação técnica.
Para eles, essa desinformação dificulta, por exemplo, que as pessoas aceitem as decisões dos profissionais de saúde (55%) e ou as fazem pressioná-los por tratamentos sem comprovação científica (37,7%).
“Os números me desapontaram um pouco. Eu esperava que todos os médicos considerassem as fake news desastrosas, criminosas, mas há um percentual de médicos que acha que não”, afirma César Fernandes.
Massuda também atribui aos médicos aliados ao governo Bolsonaro uma parcela da responsabilidade por essa onda de desinformação.
“Dois anos de enfrentamento da pandemia, tantas pessoas morrendo, e eles defendendo a eficácia da hidroxicloroquina, agora questionando a vacina para crianças sem argumentação científica nenhuma.”
Para o professor da FGV, nesta pandemia está ocorrendo algo novo que colabora com a propagação das fake news: a desconstrução da autoridade técnica do Ministério da Saúde.
“O Ministério da Saúde sempre teve um papel muito importante na comunicação com a população nas campanhas da saúde pública. Mas, quando começa a questionar a vacinação de crianças, decide fazer uma consulta pública absurda, sem sentido, é um fator a mais para atrapalhar e criar confusão.”
De acordo com a pesquisa, 72% dos médicos reprovam a gestão do atual ministro da Saúde, o cardiologista Marcelo Queiroga.
“Acho que exauriu a nossa paciência. Os médicos estão muito cansados dessa maneira de ser do atual ministro, essa dubiedade, uma hora querendo agradar os médicos, outra hora querendo agradar a sua chefia, não tem um pensamento linear”, diz Fernandes.
A pesquisa da AMB também mediu a percepção em relação a uma nova demanda de pacientes para qual as políticas públicas ainda não estão estruturadas: os sequelados da Covid, a chamada Covid longa.
Cerca de 71% dos entrevistados dizem ter constatado na prática diária casos de pacientes com sequelas após a cura da infecção, entre elas problemas cardíacos e trombose (23,%), sequelas neurológicas, AVC (22%) e fibrose pulmonar (18,9%).
“O sistema de saúde vai precisar de uma medicina de reabilitação dirigida ao pós-Covid, para o tratamento de sequelas com consequências muito sérias, como a fibrose pulmonar, e outras, como cefaleia, fadiga, transtorno de humor, que impactam diretamente a qualidade de vida da pessoa.”
Há também o represamento de outras demandas não Covid. Metade dos médicos (50%) diz que tem conhecimento de agravos em doenças, como câncer, diabetes e doenças cardíacas, que não foram cuidadas durante a pandemia.
“Os países que lidaram melhor com a pandemia organizaram o atendimento Covid e a manutenção do atendimento não Covid, para não ter essa demanda reprimida. Aqui a gente está vendo cânceres mais avançado, a gente retrocedeu para uma situação de antes de 1990”, afirma Massuda.
Fonte: Folhapress
Créditos: Folhapress