De acordo com a quarta edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope em 2015, as mulheres são maior parte de quem lê e influencia o hábito da leitura. A pesquisa consultou uma amostra de 5012 pessoas entre 5 e mais de 70 anos. 52% delas eram mulheres e 48% homens. Mais da metade das pessoas consultadas (67%) disse que não possuiu nenhum responsável ou nenhuma pessoa que incentivasse a leitura na infância. Mas dos 33% que tiveram alguma influência, a mãe ou representante feminina foi a principal responsável, seguida pela professora ou professor. Das mulheres entrevistadas, 59% são leitoras. Entre os homens, são 52%.
Nas páginas dos livros brasileiros de grandes editoras como a Record, a Companhia das Letras e a Rocco, porém, a predominância é de escritores (70,6%) e de personagens homens (58,2%), brancos (77,9%) e heterossexuais (85,7%). Os números foram levantados pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, da Universidade de Brasília, coordenado pela pesquisadora Regina Dalcastagnè. A pesquisa analisou 692 romances escritos por 383 autores nos períodos de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014.
De 2005 a 2014, de acordo com a pesquisa, o número de autoras aumentou 3,5%. O crescimento da participação de autores não-brancos foi menor ainda, de 0,1%. Além da falta de representação das diversas identidades de gênero e etnia, a pesquisa revela também uma maior concentração de autores publicados no Rio de Janeiro (33%), em São Paulo (27%) e no Rio Grande do Sul (9%).
Na editora Escaleras, segundo Débora, há uma preocupação em ter um número maior de autoras negras e LGBTQIA+, ainda que não restrinjam publicações de homens. “Quando somos mulheres nesse meio, a primeira coisa é duvidarem da gente e do nosso potencial artístico e profissional”, conta. Hoje, no catálogo, a editora tem publicação de seis autoras e três autores.
Carol Magalhães, 42, também criou da Quintal Edições com o intuito de publicar mais mulheres. “Essa é nossa grande preocupação. Mas dentro desse recorte queremos ter o maior número de representatividade. Temos negras e LGBTS publicadas e queremos que esse número cresça, bem como queremos ter no nosso catálogo outras minorias representadas”. Hoje, o catálogo da Quintal é composto por 24 obras de escritoras com temáticas distintas.
As restrições no mercado tradicional também afetam as temáticas literárias escolhidas para publicação. “É esperado de mulheres que escrevem e publicam que seus textos sejam leves, doces, que falem de amenidades ou até de que falem dos homens”, complementa Luciana Lhullier, 49, editora na Desdêmona, criada em 2018 em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. A editora já publicou 63 autoras, todas reunidas na coletânea “As coisas que as mulheres escrevem”, de março de 2019.
Esse é o primeiro e, por enquanto, único projeto da Desdêmona. “O livro não tem só poesia, tem de tudo”, conta a poeta Julia Odri, 23, participante da coletânea. “A temática foi bem livre e meio que tudo fala de coisas profundas, mas de formas diferentes. Desde coisas simples do cotidiano, até questões mais filosóficas”. Julia publicou o poema sem título que aborda pensamentos intrusos. Em trecho, o poema diz: “Armo uma armadilha / Caio trucada / E ao lado dos três reis / Danço de olhos fechados / Sem que antes esteja definida / A data sentença de morte”.
A literatura independente não envolve apenas editoras, muitas autoras se autopublicam com apoio de financiamento coletivo. O Coletivo Mamoeira, formado por nove jovens mulheres com idades entre 22 e 29 anos da cidade de São Paulo, surgiu em 2018 para oferecer revisão de texto gratuitamente a mulheres que publicam de maneira independente.
Gabriela Zeppone, Paula Polydoro, Beatriz Takematsu, Raphaela Crispim, Camila dos Santos, Fabiana Silva, Jayana de Oliveira, Suellen Ciccoti e Graziela Drago afirmam que entre buscar financiamento e lidar com as burocracias de direitos autorais, com a diagramação, impressão e divulgação dos livros, a etapa de revisão de texto é, muitas vezes, esquecida.
Elas abriram a primeira chamada para revisões no final de 2018 e no início de 2019. Tiveram 15 autoras inscritas, entre brancas e não-brancas, de 20 a 30 anos. Todas são mulheres cis, ou seja, se identificam com o sexo atribuído ao nascimento. Cinco são bissexuais, sete são heterossexuais, uma é lésbica e duas são pansexuais. Das 15, onze moram ou têm origem nas quebradas de São Paulo.
Fortalecer a produção independente de escritoras negras e LGBTQIA+ também é o foco da Padê Editorial, criada em 2015 no Distrito Federal e em São Paulo pela escritora Tatiana Nascimento, 38, e pela poeta Bárbara Esmenia, 35. Tanto Tatiana quanto Bárbara abordam em seus escritos temáticas ligadas à raça e sexualidade e, hoje, a Padê conta com outras três mulheres em sua equipe.
As obras são comercializadas no site da editora, em feiras independentes e estão nas livrarias O Jardim (Goiânia), Katuka Africanidades (Salvador) e Livraria Africanidades (São Paulo). Tatiana é autora do poema “y now, frágil”, que aborda questões referentes à ancestralidade e foi gravado pela cantora Luedji Luna. Em trecho, o poema diz: “Y naufrágio / Y now frágil, frágil, frágil / O mágico da diáspora: Des / Membrar terra-chão / Mas se eu já fui trovão / Que nada desfez / Eu sei ser / Trovão”.
“Mesmo estando formalmente desempregada há anos, consigo ter parte de minha renda proveniente da Padê. O reconhecimento do público, por sermos tão especializadas, é muito favorável”, explica Tatiana. “As pessoas amam a editora, acham nosso trabalho importante, compram e divulgam os livros. Fazem trabalhos acadêmicos sobre eles, inclusive fora do Brasil”. A Padê tem 27 títulos no catálogo, entre romances e poesias, de autoras negras, lésbicas, bissexuais e trans estreantes, além das traduções e estudos da teoria negra e LGBTQIA+.
“Publicamos aquilo que amamos, que nos comove, que é pulsante. Isso tem a ver com a recusa de publicar narrativas que atendem aos estereótipos do que seja literatura de autoria negra, literatura de autoria LGBTQIA+. Ou seja, uma literatura centrada no tripé dor-denúncia-resistência”, fala Tatiana. “Publicar autoras negras e/ou LGBTQIA+ que se expressam de forma singular tem sido um exercício importante para questionar os locais estéticos que são destinados a nós pelos cânones brancos e heteros.”
Jô Freitas, 30, poeta do Sarau das Pretas e idealizadora do Sarau Pretas Peri, na cidade de São Paulo, também observa o isolamento de autores e poetas negras e negros no mercado literário tradicional. “Existem muitos escritores negros que abordam diversos assuntos. Mas quem está nos festivais de literatura e nas grandes feiras?”, diz. “Ainda não é a gente. Ficamos numa mesa específica para falar sobre negritude feminina. Deveríamos ser convidadas para participar de feiras que debatem a negritude e o feminismo, sim, mas também em feiras que não debatem isso.”
Flip mais feminina
As críticas têm reverberado. Em 2016, a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) teve recorde de escritoras convidadas a palestrar. Foram 17 autoras de um total de 39 convidados, mas nenhum autor ou autora negra. Para levantar o debate da falta de representatividade de negros no festival, a pesquisadora Giovana Xavier, da UFRJ, criou a campanha #vistanossapalavraflip2016. No ano seguinte, o cenário começou a mudar e autores e autoras negras representaram 30% da programação.
Em 2019, a Flip convidou 17 mulheres entre os 33 autores que palestraram, com a curadoria de Fernanda Diamant. As 21 mesas tiveram títulos que remetem à obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, autor homenageado deste ano. As autoras participantes falaram sobre temáticas diversas, envolvendo política, arquitetura, crônicas cotidianas e vivências. A conferência de abertura da festa também foi feita por uma mulher, Walnice Nogueira Galvão, uma das principais críticas literárias no país e especialista na obra de Euclides da Cunha.
Dos trinta livros mais vendidos durante a Flip na Livraria da Travessa, livraria tradicional do Rio, dezoito foram escritos por mulheres. Em primeiro lugar esteve o “Memórias da Plantação”, de Grada Kilomba, editora Cobogó, e em segundo lugar está “Fique Comigo”, de Ayobami Adebayo, editora Harper Collins.
“Essas casas começaram como aquilo que não é programação oficial da Flip e agora são consideradas mais ou menos como programação da Flip. É fruto de uma batalha de muito tempo. As grandes editoras não investem em autores desconhecidos, em nada que possa ter risco. Elas não investem em autores brasileiros, a menos que eles sejam celebridades e já tenham algum tipo de prestígio”, fala Sabine Moura, da Editora Nua, do Rio de Janeiro. “A própria Lizandra falou que é uma vitória a Jarid Arraes ter sido integrada no primeiro dia de programação oficial da Flip em 2019.”
Do outro lado, as leitoras se somam a essa batalha por representatividade. Em 2014, a escritora Joanna Walsh propôs o projeto #readwomen2014 (#leiamulheres2014, em português). Por meio da hashtag, as pessoas compartilhavam nas redes sociais fotos dos livros das escritoras que estavam lendo. Em 2015, Juliana Gomes, Michelle Henriques e Juliana Leuenroth replicaram a ideia no Brasil e organizaram o primeiro clube Leia Mulheres, com o objetivo de estimular a leitura, o debate e a divulgação de livros de autoria feminina.
“Eu tento sempre conhecer escritoras nacionais. Sou apaixonada pela Geruza Zelnys, pela Jarid Arraes, pela Cidinha da Silva, pela Natalia Borges Polesso, pela Angélica Freitas, pela Verena Cavalcante. No Leia Mulheres tentamos passar pelos mais diversos gêneros, por vários países”, conta Michelle Henriques, 32, mediadora do Leia Mulheres São Paulo, que tem encontros mensais. A iniciativa de criar clubes de leituras de mulheres foi se espalhando e hoje há grupos em quase todos os Estados do Brasil – o único que ainda está de fora é o Acre. “O espaço das mulheres tem crescido consideravelmente. Acho que o futuro editorial para as mulheres, no que diz respeito ao aumento do espaço e credibilidade, é bastante promissor”, confia Carol Magalhães.
Fonte: Agência Énois para o TAB
Créditos: Bárbara Zarif