Artigo retrata história de vida de Monsenhor José da Silva Coutinho
O título acima poderia levar o leitor a imaginar que este é um artigo sobre a repercussão nacional do escândalo de corrupção no Hospital Padre Zé. Mas não se trata disso. Na verdade, o desejo de escrever sobre o Monsenhor José da Silva Coutinho (1897-1973), popularmente conhecido como padre Zé, veio ainda no decorrer das pesquisas para o livro “Biu Ramos: o timoneiro da Arca de Sonhos” (Editora A União, 2023), fruto do meu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPJ-UFPB).
Em 1973, Biu Ramos atuou como correspondente da revista Realidade, tida como um marco modernizador no jornalismo brasileiro, que todos os meses trazia grandes reportagens e fotojornalismo de alta qualidade. Na edição de novembro daquele ano, Biu assinou o perfil “Retrato de um padre mendigo”, sobre o padre Zé Coutinho, descrito por ele como “um sacerdote que não quer ver a pobreza humilhada”, e que “até pede esmola no lugar dos pobres”.
Por uma triste coincidência, naquele mesmo mês de novembro de 1973, poucos dias depois da publicação do perfil, o sacerdote faleceu. Três meses antes, Biu havia lido nos jornais que o padre Zé estava doente, com problemas cardíacos, e que, aconselhado pelos médicos a manter repouso absoluto, não sairia mais para esmolar. Ao lado da notícia, o próprio padre escreveu uma nota esclarecendo que o Instituto São José seria gerido por uma “junta governativa” composta por cinco membros: “E eu, nas horas em que não estou dormindo (que são poucas), dou uma mãozinha”, acrescentou o padre.
“Pura modéstia, claro, pois até o dia em que pôde retornar ao batente (voltou semanas depois) foi o seu prestígio que garantiu as esmolas. Ou melhor, a sobrevivência das obras. Diariamente, dois meninos saíam às ruas levando a cadeira de rodas. E, em toda parte, ela era recebida como um símbolo: a mão estendida do padre Zé”, emendou Biu.
Algum tempo depois de “retornar ao batente”, o padre passou mal. Foi no dia dois de novembro de 1973, feriado de Finados, enquanto esmolava no cemitério Senhor da Boa Sentença. O sacerdote foi levado às pressas para o hospital, onde morreu poucos dias depois, em cinco de novembro — há 50 anos, portanto.
À época, o padre Zé contava 76 anos, mas Biu se recusava a acreditar que ele “já não andasse pelas ruas enladeiradas no tempo dos holandeses, quando a cidade não se chamava ainda João Pessoa, capital da Paraíba, mas Filipéia de Nossa Senhora das Neves”. Biu não conseguia imaginar a cidade sem o padre Zé, que já fazia parte da paisagem urbana, tanto quanto “as palmeiras e a fachada cinzenta dos sobrados”.
“Fecho os olhos e vejo cenas antigas”, escreveu Biu. “Numa delas vejo padre Zé pedindo esmolas, na porta de um café; recebe sem agradecer, como sempre, e enfia o dinheiro no bolso da batina surrada”.
Como que antevendo a partida iminente do padre Zé, Biu continuou traçando seu perfil nas páginas da Realidade. O leitor que folheasse a revista depois do dia cinco de novembro poderia imaginar estar diante do obituário do sacerdote.
Foi em 1918, logo depois de sua ordenação sacerdotal, que o padre Zé começou a pedir esmolas para os pobres. Mas, rapazinho ainda, nos tempos de Seminário, organizava listas com a finalidade de arrecadar doações para os colegas menos abastados.
Por mais de quatro décadas, o padre Zé atuou como vigário da paróquia de Nossa Senhora do Carmo, no Centro da cidade, ao mesmo tempo em que se dedicava ao trabalho caritativo. O sacerdote começou a fazer assistência social numa época em que nada existia nesse campo, na Paraíba. Segundo Biu, o padre Zé antecedeu o próprio poder público nessa seara, até que, em 1935, o governo criou o seu próprio serviço de assistência especialmente para que fosse gerido pelo padre:
Nas linhas seguintes, Biu deu seu testemunho pessoal sobre a icônica figura do padre Zé:
Apressei o passo para ver de perto o homem a quem meu pai, modesto operário de uma usina de açúcar, considerava um santo. Apesar dos cabelos inteiramente brancos (a cabeça sempre raspada a navalha), via-se que era ainda forte, vigoroso. Mais tarde voltei a vê-lo ainda, muitas vezes. Ficava duas, três horas nas filas dos cinemas, recolhendo esmolas. Ou ia de bar em bar, de restaurante em restaurante. Aos domingos, seu ponto era a feira livre do mercado central. Um dia, muito depois desse primeiro encontro, surpreendi-me ao vê-lo sentado numa cadeira, na fila do cinema Plaza. Não podia ficar muito tempo de pé, cansava-se facilmente. Depois, passou a pedir esmolas num riquixá, que dois meninos puxavam, à maneira dos chineses. Ultimamente, havia trocado o riquixá por uma cadeira de rodas e aparecido com duas novidades: um chapéu de pala comprida, como dos jogadores americanos de baseball, e uma varinha leve, igual às que usam os professores para mostrar mapas e gráficos nas salas de aula. Com ela, padre Zé simplificou sua tarefa de pedinte: bastava bater no ombro da pessoa distraída e, em seguida, estender a mão.”
Muitos anos antes de Biu Ramos perfilar o padre Zé Coutinho nas páginas da Realidade, o sacerdote foi destaque em outra revista de circulação nacional, a Manchete. Na edição de 25 de agosto de 1956, o repórter Haroldo Holanda e o fotógrafo Luís Pinto apresentaram aos leitores “o São Vicente da Paraíba”:
que lhe restam, padre Zé Coutinho sai, Paraíba afora, recolhendo esmolas e auxílios para os desamparados do Nordeste. Muitas famílias vivem quase só de sua ajuda. Muitas crianças estão sendo criadas por êle [sic.]. Ao padre Zé Coutinho recorrem até prefeitos do interior, em busca de socorro para os pobres de sua região. E padre Zé Coutinho, humildemente, sacola pendurada no ombro, prossegue em sua marcha, entrando em clubes como em casas comerciais, em templos protestantes como em sinagogas, sempre buscando o pão daqueles para quem se fêz [sic.] mais que um pai: um verdadeiro santo protetor.”
Haroldo Holanda e Luís Pinto flagraram a abordagem franca e direta do padre Zé a um “forasteiro”: um carioca que, “tranquilamente empoleirado no alto da cadeira, estendia seu pé ao engraxate”, enquanto o sacerdote se aproximava:
No perfil, Haroldo Holanda ressaltou a vida simples que o padre Zé levava: “não faz ostentação e o que menos tem é vaidade”, observou. Mais à frente, começou a descrever a atividade caritativa do sacerdote:
Algo interessantíssimo que o repórter registrou é que o padre Zé foi uma espécie de precursor da legislação trabalhista:
Além de ter dirigido o jornal A Imprensa, padre Zé manteve, na Rádio Tabajara, o programa diário “Vinte e cinco minutos com o Padre”, de enorme sucesso e de grande audiência na época. No rádio, o padre Zé advertia as autoridades para os problemas públicos, denunciava violências, combatia negociatas. O sacerdote constituiu-se numa “espécie de vigilante dos paraibanos e de mais legítimo representante do povo em tôdas [sic.] as questões”:
“Porque problema que padre Zé Coutinho enfrenta não fica sem solução”, testificou Haroldo.
Depois de tantos escândalos envolvendo o Instituto São José, mantenedor do Hospital Padre Zé, é lugar comum dizer que deve haver maior transparência na aplicação dos recursos públicos destinados à entidades filantrópicas. No entanto, o caminho para que o Instituto possa se reerguer não é tanto apostar na criação de mecanismos de controle internos e externos — isso também, é claro! O essencial, porém, é olhar para a figura do seu fundador, o padre Zé Coutinho, esse “são Vicente paraibano”, que constrangia a todos com sua mão estendida, pedindo esmolas para os seus pobres. É necessário fazer um caminho de “conversão”, de mea culpa, para que seja o exemplo de caridade abnegada e de compromisso com os pobres que volte a despertar a atenção da mídia nacional, e não os escândalos que fazem rasgar as vestes e enrubescer de vergonha.
Fonte: Carlos Romero
Créditos: Polêmica Paraíba