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Padre Zé na mídia nacional - Por Samuel Amaral

O título acima poderia levar o leitor a imaginar que este é um artigo sobre a repercussão nacional do escândalo de corrupção no Hospital Padre Zé. Mas não se trata disso. Na verdade, o desejo de escrever sobre o Monsenhor José da Silva Coutinho (1897-1973), popularmente conhecido como padre Zé, veio ainda no decorrer das pesquisas para o livro “Biu Ramos: o timoneiro da Arca de Sonhos” (Editora A União, 2023), fruto do meu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPJ-UFPB).

Foto: Padre Zé, em ilustração da matéria da revista Manchete, edição 227, de 25.08.1957 ▪ Imagem: L. Pinto ▪ Fonte: Biblioteca Nacional

Artigo retrata história de vida de Monsenhor José da Silva Coutinho

O título acima poderia levar o leitor a imaginar que este é um artigo sobre a repercussão nacional do escândalo de corrupção no Hospital Padre Zé. Mas não se trata disso. Na verdade, o desejo de escrever sobre o Monsenhor José da Silva Coutinho (1897-1973), popularmente conhecido como padre Zé, veio ainda no decorrer das pesquisas para o livro “Biu Ramos: o timoneiro da Arca de Sonhos” (Editora A União, 2023), fruto do meu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPJ-UFPB).

Em 1973, Biu Ramos atuou como correspondente da revista Realidade, tida como um marco modernizador no jornalismo brasileiro, que todos os meses trazia grandes reportagens e fotojornalismo de alta qualidade. Na edição de novembro daquele ano, Biu assinou o perfil “Retrato de um padre mendigo”, sobre o padre Zé Coutinho, descrito por ele como “um sacerdote que não quer ver a pobreza humilhada”, e que “até pede esmola no lugar dos pobres”.

Por uma triste coincidência, naquele mesmo mês de novembro de 1973, poucos dias depois da publicação do perfil, o sacerdote faleceu. Três meses antes, Biu havia lido nos jornais que o padre Zé estava doente, com problemas cardíacos, e que, aconselhado pelos médicos a manter repouso absoluto, não sairia mais para esmolar. Ao lado da notícia, o próprio padre escreveu uma nota esclarecendo que o Instituto São José seria gerido por uma “junta governativa” composta por cinco membros: “E eu, nas horas em que não estou dormindo (que são poucas), dou uma mãozinha”, acrescentou o padre.

“Pura modéstia, claro, pois até o dia em que pôde retornar ao batente (voltou semanas depois) foi o seu prestígio que garantiu as esmolas. Ou melhor, a sobrevivência das obras. Diariamente, dois meninos saíam às ruas levando a cadeira de rodas. E, em toda parte, ela era recebida como um símbolo: a mão estendida do padre Zé”, emendou Biu.

Algum tempo depois de “retornar ao batente”, o padre passou mal. Foi no dia dois de novembro de 1973, feriado de Finados, enquanto esmolava no cemitério Senhor da Boa Sentença. O sacerdote foi levado às pressas para o hospital, onde morreu poucos dias depois, em cinco de novembro — há 50 anos, portanto.

À época, o padre Zé contava 76 anos, mas Biu se recusava a acreditar que ele “já não andasse pelas ruas enladeiradas no tempo dos holandeses, quando a cidade não se chamava ainda João Pessoa, capital da Paraíba, mas Filipéia de Nossa Senhora das Neves”. Biu não conseguia imaginar a cidade sem o padre Zé, que já fazia parte da paisagem urbana, tanto quanto “as palmeiras e a fachada cinzenta dos sobrados”.

“Fecho os olhos e vejo cenas antigas”, escreveu Biu. “Numa delas vejo padre Zé pedindo esmolas, na porta de um café; recebe sem agradecer, como sempre, e enfia o dinheiro no bolso da batina surrada”.

Como que antevendo a partida iminente do padre Zé, Biu continuou traçando seu perfil nas páginas da Realidade. O leitor que folheasse a revista depois do dia cinco de novembro poderia imaginar estar diante do obituário do sacerdote.

Foi em 1918, logo depois de sua ordenação sacerdotal, que o padre Zé começou a pedir esmolas para os pobres. Mas, rapazinho ainda, nos tempos de Seminário, organizava listas com a finalidade de arrecadar doações para os colegas menos abastados.

Por mais de quatro décadas, o padre Zé atuou como vigário da paróquia de Nossa Senhora do Carmo, no Centro da cidade, ao mesmo tempo em que se dedicava ao trabalho caritativo. O sacerdote começou a fazer assistência social numa época em que nada existia nesse campo, na Paraíba. Segundo Biu, o padre Zé antecedeu o próprio poder público nessa seara, até que, em 1935, o governo criou o seu próprio serviço de assistência especialmente para que fosse gerido pelo padre:

“Ele aproveitou para fundar o seu Instituto São José, que ainda hoje é hospedaria gratuita de estudantes pobres. Criou também a Pensão Camarada, para fornecer refeições. Com os anos, a obra cresceu. Hoje dispõe de um albergue, uma farmácia que despacha receitas praticamente de graça, curso de datilografia, de corte e costura, etc. Na Casa Padre Zé, os mendigos têm sempre um prato de comida e uma rede para dormir.”
Biu entrevistou o jornalista Nathanael Alves, então secretário do Tribunal Regional Eleitoral, que passou pelo Instituto São José na época de estudante. Segundo Nathan, o padre Zé fazia mais do que o filósofo chinês Kuan-Tsu recomendava: “Se deres um peixe, o homem se alimentará apenas uma vez; mas, se o ensinares a pescar, se alimentará toda a vida”. Nathan, então, emendou: “Padre Zé dá o peixe e ensina a pescar”.

Nas linhas seguintes, Biu deu seu testemunho pessoal sobre a icônica figura do padre Zé:

“A primeira vez que vi padre Zé, eu era menino, fazia o ginásio à noite no austero Liceu [sic.] Paraibano. Encontrei-o à beira da lagoa do Parque Solon de Lucena, caminhando entre as palmeiras. Ia na minha frente, muito gordo, com seu andar balançado, como se se equilibrasse a muito custo sobre as pernas curtas.
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Padre Zé, conduzido em cadeira de rodas, pede esmolas nas ruas de João Pessoa ▪ @hospitalpadreze

Apressei o passo para ver de perto o homem a quem meu pai, modesto operário de uma usina de açúcar, considerava um santo. Apesar dos cabelos inteiramente brancos (a cabeça sempre raspada a navalha), via-se que era ainda forte, vigoroso. Mais tarde voltei a vê-lo ainda, muitas vezes. Ficava duas, três horas nas filas dos cinemas, recolhendo esmolas. Ou ia de bar em bar, de restaurante em restaurante. Aos domingos, seu ponto era a feira livre do mercado central. Um dia, muito depois desse primeiro encontro, surpreendi-me ao vê-lo sentado numa cadeira, na fila do cinema Plaza. Não podia ficar muito tempo de pé, cansava-se facilmente. Depois, passou a pedir esmolas num riquixá, que dois meninos puxavam, à maneira dos chineses. Ultimamente, havia trocado o riquixá por uma cadeira de rodas e aparecido com duas novidades: um chapéu de pala comprida, como dos jogadores americanos de baseball, e uma varinha leve, igual às que usam os professores para mostrar mapas e gráficos nas salas de aula. Com ela, padre Zé simplificou sua tarefa de pedinte: bastava bater no ombro da pessoa distraída e, em seguida, estender a mão.”

No perfil, Biu também cita o livro “Aos que não me conhecem”, uma espécie de mini-autobiografia do padre Zé, publicada pela editora de A União, em 1965. O objetivo da obra era explicar o porquê o padre se considerava “o homem mais doido da Paraíba”. Que será feito desse livrinho? Procurei nos sebos físicos e virtuais, mas, infelizmente, não encontrei. No livro, o padre Zé contou muitas histórias, entre elas,
“Como organizou e liderou […] uma passeata de carroceiros (as carroças puxadas a burro que hoje ainda existem, muitas, em João Pessoa). Ia ser construído o Porto de Cabedelo, a 18 quilômetros da capital. Com isso, as carroças que retiravam cargas no modesto porto do Capim, no rio Sanhauá, na cidade baixa, ficariam sem trabalho. Padre Zé protestou, mesmo sabendo que estava indo de encontro ao progresso. Levou uma comissão de carroceiros, a maioria de pés no chão, para falar com o governador. “Eu queria convencê-lo”, comentou ele depois, “de que não sou contra o progresso. Que venha o progresso, mas sem trazer o desespero”.
O São Vicente da Paraíba

Muitos anos antes de Biu Ramos perfilar o padre Zé Coutinho nas páginas da Realidade, o sacerdote foi destaque em outra revista de circulação nacional, a Manchete. Na edição de 25 de agosto de 1956, o repórter Haroldo Holanda e o fotógrafo Luís Pinto apresentaram aos leitores “o São Vicente da Paraíba”:

“Em João Pessoa vive uma edição nordestina de São Vicente de Paula: chama-se monsenhor José da Silva Coutinho, ou, mais simplesmente, padre Zé Coutinho. De batina surrada, com um sorriso a mostrar sempre os dois dentes
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Revista Manchete, 25.08.1957 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional

que lhe restam, padre Zé Coutinho sai, Paraíba afora, recolhendo esmolas e auxílios para os desamparados do Nordeste. Muitas famílias vivem quase só de sua ajuda. Muitas crianças estão sendo criadas por êle [sic.]. Ao padre Zé Coutinho recorrem até prefeitos do interior, em busca de socorro para os pobres de sua região. E padre Zé Coutinho, humildemente, sacola pendurada no ombro, prossegue em sua marcha, entrando em clubes como em casas comerciais, em templos protestantes como em sinagogas, sempre buscando o pão daqueles para quem se fêz [sic.] mais que um pai: um verdadeiro santo protetor.”

Haroldo Holanda e Luís Pinto flagraram a abordagem franca e direta do padre Zé a um “forasteiro”: um carioca que, “tranquilamente empoleirado no alto da cadeira, estendia seu pé ao engraxate”, enquanto o sacerdote se aproximava:

 Uma esmola pelo amor de Deus ⏤ interpelou o padre.
O carioca virou-se assustado ante aquele estranho mendigo, observou Haroldo. Mas padre Zé Coutinho foi logo às explicações:
⏤ Eu sou o padre mais doido do mundo, meu filho. Peço esmolas para os pobres desta pobre terra. Nada peço para mim. Mas peço, sim, que você dê sua contribuição para o socorro aos desamparados.
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 Inventário do Tempo
Padre Zé no parque Arruda Câmara,

No perfil, Haroldo Holanda ressaltou a vida simples que o padre Zé levava: “não faz ostentação e o que menos tem é vaidade”, observou. Mais à frente, começou a descrever a atividade caritativa do sacerdote:

“[…] alimenta diariamente 200 pessoas, dá morada a dezenas de mendigos e presta vários outros auxílios diferentes a todos os que o procuram. Buscando socorro em seu trabalho, as autoridades paraibanas conseguiram extirpar em João Pessoa o mal da mendicância. E a êle [sic.] devem, também, a extinção de 8 mil mocambos incrustados na cidade como um inabalável rochedo. Heranças que lhe têm cabido e elevadas doações que lhe fazem, muitas com caráter pessoal, padre Zé Coutinho as destina, sempre, a suas obras de assistência. Sua mais importante obra, no entanto, é o Instituto São José, que mantém os mais diversos cursos de artesanatos para os filhos de pobres”.

Algo interessantíssimo que o repórter registrou é que o padre Zé foi uma espécie de precursor da legislação trabalhista:

“Já em 1920, quando era diretor do jornal católico de João Pessoa [A Imprensa], proporcionava férias remuneradas a seus operários, pagava-lhes salário integral quando faltavam por doença, dando-lhes assistência médica. E tudo isto padre Zé Coutinho relata exibindo documentos, invocando testemunhos”.
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Padre Zé sendo conduzido em sua cadeira de rodas, na década de 1950. @jampadasantigas.

Além de ter dirigido o jornal A Imprensa, padre Zé manteve, na Rádio Tabajara, o programa diário “Vinte e cinco minutos com o Padre”, de enorme sucesso e de grande audiência na época. No rádio, o padre Zé advertia as autoridades para os problemas públicos, denunciava violências, combatia negociatas. O sacerdote constituiu-se numa “espécie de vigilante dos paraibanos e de mais legítimo representante do povo em tôdas [sic.] as questões”:

“Porque problema que padre Zé Coutinho enfrenta não fica sem solução”, testificou Haroldo.

Depois de tantos escândalos envolvendo o Instituto São José, mantenedor do Hospital Padre Zé, é lugar comum dizer que deve haver maior transparência na aplicação dos recursos públicos destinados à entidades filantrópicas. No entanto, o caminho para que o Instituto possa se reerguer não é tanto apostar na criação de mecanismos de controle internos e externos — isso também, é claro! O essencial, porém, é olhar para a figura do seu fundador, o padre Zé Coutinho, esse “são Vicente paraibano”, que constrangia a todos com sua mão estendida, pedindo esmolas para os seus pobres. É necessário fazer um caminho de “conversão”, de mea culpa, para que seja o exemplo de caridade abnegada e de compromisso com os pobres que volte a despertar a atenção da mídia nacional, e não os escândalos que fazem rasgar as vestes e enrubescer de vergonha.

Fonte: Carlos Romero
Créditos: Polêmica Paraíba