Na recente cruzada por “Lula Livre”, artistas de renome como Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso intercalaram músicas, em shows pelo Brasil, com o refrão que acabou sensibilizando o Supremo Tribunal Federal e levando-o a colocar em liberdade o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A decisão do STF não levou em conta o mérito das acusações imputadas a Da Silva, o que será objeto de outros julgamentos, mas a mudança de jurisprudência sobre a vigência de prisões a partir de condenação em segunda instância. A Corte reformulou entendimento até então firmado a respeito e que fez com que o ex-mandatário cumprisse pelo menos um ano de prisão na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, expedindo, a esta altura, o alvará de liberdade, questão que ainda hoje demanda controvérsia nas searas jurídica-política.
Em meio a todo o barulho nacional, ora pró-Lula Livre, ora pró-Lula Preso, a cantora paraibana Elba Ramalho, uma das estrelas de primeira grandeza do cenário artístico nacional, manteve indiferença olímpica face ao desaguisado, não dando um pio a respeito. Elba foi coerente com uma opção que em bastante tempo de estrada no mundo da música decidiu cristalizar: a de não misturar arte com política & ideologia. Já em 1984, quando foi a Piancó no retorno da filha pródiga, consagrada, às suas origens, Elba, numa entrevista a mim e a Josemar Pontes para o jornal “A União”, que ganhou espaço de página inteira, deixou claro que considerava o seu trabalho, do ponto de vista estético e cultural, como um trabalho político. “Mas acho que o artista não tem compromisso de engajamento. Eu jamais me ligaria ou me filiaria a um partido para subir no palco e fazer comício”, frisou Elba, fazendo a ressalva de que participou de algumas manifestações pela convocação de eleições diretas, mas cantando, que é o que sabe fazer melhor, e não panfletando.
Nessa entrevista, que reli neste fim de semana ao remexer arquivos, Elba foi extremamente didática ao situar sua posição: “Eu sou uma artista e faço a minha parte. Os políticos que façam o trabalho deles. Agora, jamais você pode distanciar as coisas porque, como cidadão brasileiro, você tem compromissos, encargos sociais. Paga contas de gás, luz, telefone e vive. Como você pode não ter uma consciência política, principalmente social, diante da realidade que você vive, que você vê, diante da fome, da violência, da fome, de tudo que se presencia?”. Nessa entrevista, Elba começou a demarcar os limites da sua atuação para que não pairassem dúvidas ou cobranças depois. Tanto que, mais tarde, numa entrevista ao jornalista Severino Ramos, reafirmou o mesmo bê-a-bá. Em 84, Elba queixava-se que os problemas acumulavam-se há anos no país, havia alternância de partidos e de pessoas no poder, “a gente está vivendo com a corda no pescoço, e nada é resolvido”.
Achei importante situar tais declarações e os respectivos contextos para demonstrar que Elba Ramalho continua sendo Elba Ramalho e não se tem notícia de que “patrulhas” políticas ou ideológicas tenham avançado no seu encalço para esganá-la por não ter se posicionado no jogo político. A atitude de não fazer jogo duplo, de não barganhar favores ou concessões do Estado em troca de adesão política ou ideológica, é característica da personalidade da artista de Conceição, que chegou aonde chegou depois de muita “ralação”, de contatos na fonte, junto a figuras como o próprio Chico Buarque de Holanda e João Gilberto. Elba não se mascara e muito menos se deixa deslumbrar pelo “pudê”. Os holofotes que lhe atraem são outros e estão intrinsecamente ligados ao seu fazer artístico, ao fazer cultural, que Elba tem trilhado há décadas, sertões afora.
Lembro de um episódio ocorrido no governo de Cássio Cunha Lima, quando comitiva de jornalistas, que integrei, foi convidada para ir ao Rio de Janeiro testemunhar tributos & homenagens ao menestrel Ariano Suassuna. Num intervalo, para o jantar, em restaurante agradável da Cidade Maravilhosa, Elba foi “provocada” por José Nêumanne Pinto, jornalista paraibano, natural de Uiraúna, a se definir ideologicamente como “de direita”, por ter atuado no coral da FACMA, de Elizabeth Marinheiro, em Campina Grande. Elba não escondeu sua irritação com a provocação de Nêumanne, deixando claro que na época da passagem por Campina Grande não tinha consciência política necessária para se posicionar de qualquer lado – o que, a seu ver, anulava a pecha que Nêumanne lhe atribuía. Volto a dizer: não há nenhum registro, nenhum depoimento, atestando que Elba tenha ‘colaborado’ com a ditadura militar instaurada em 1964; pelo contrário, chegou a “flertar” com o índex à medida que se aproximava de artistas “malditos” para o regime de exceção como Caetano e Chico Buarque.
É fundamental colocar os pontos nos is porque estamos, a nível nacional, diante de uma nova temporada de radicalização política-ideológica em que as cobranças a artistas ou celebridades se intensificam, como se elas tivessem que assumir papel de porta-vozes dessa ou daquela bandeira. Oxalá Elba continue se dedicando ao seu melhor. E que os ventos da Inquisição de plantão não soprem na sua direção!
Fonte: Os Guedes
Créditos: Nonato Guedes