opinião

Nem Deus é poupado em uma jornada pela Bahia! - Por Marcos Thomaz

Após três estados, e trocentas perguntas na mesma direção: "já chegou na Bahia??"

Após três estados, e trocentas perguntas na mesma direção: “já chegou na Bahia??”

Finalmente, estávamos na Boa Terra.

Benjamin suspira de alívio. Afinal, já se passavam mais de oito horas de viagem. Me antecipo logo a anunciar que, apesar de já estarmos no estado de destino, ainda tínhamos muito “chão” de rodagem. Mal sabia o “pequeno gafanhoto” que o mesmo tempo percorrido ainda restava a transitar. E tudo isso apenas no ansiado solo baiano.

Mais algumas poucas horas cortando a Bahia e ele, enfadado, esgotado como todos nós, larga:

“Tô puto com Deus. Como cria um país assim?”

O país, no caso, era referência ao estado Bahia. Algo ainda confuso na cabeça dele, principalmente em um território nacional, quase continental como a Bahia.

O lamento “puto com Deus” me soou a versão Benjamin do praguejo “buarquiano” “Deus é um cara gozador…”

E nenhum problema com isso…

Não vou ceder a amarras dogmáticas de terceiros e condenar meu filho por esta frase.

Confesso que acho até bonito, quando olhado pelo prisma da inocência , pureza, espontaneidade e humanidade. Afinal, eu, nós também lançamos nossos impropérios.

E tentamos, desde cedo, não aplicar este punitivismo em casa. Permitir que o menino naturalize as emoções, sensações, especialmente entre nós. Muito mais autêntico isso que o respeito robotizado, via de regra, nestes moldes padrões doutrinários por aí. Mas digo tudo isso apenas para não deixar que o impacto da fala do Ben retire dela a sua plenitude e força de relatar, sintetizar uma história.

Sigamos…

Atravessar a Bahia é uma verdadeira via crucis a qualquer cidadão a cruzar o país de norte a sul e vice-versa.

Percorro essa rota desde que vim morar na Paraíba há 22 anos. Outrora, mais frequentemente, e, nos primórdios, sempre de ônibus. Mas a partir de determinado período luxei. Naquele tempo em que a classe média teve acesso a vôo. Alguém aí lembra quando foi este tempo?? Deixa pra lá.

Fato é que, por custo e aventura, resolvi juntar o povo lá de casa (mulher e dois filhos) e refazer o percurso “voando baixo”, viário, de carro, dirigindo e revezando volante com meu filho mais velho, Tomás.

Mas remexendo na memória dos tempos de Itapemirim e, no luxo, São Geraldo…

Era ao mesmo tempo angustiante e divertido ver o desespero temporal dos outros passageiros com a epopéia baiana.

Digo divertido sem sadismo, mas por representar sempre a deixa para ensejar uma conversa mais alongada e descobrir detalhes de histórias tão iguais e diferentes ao mesmo tempo.

Explico…

Não havia ônibus direto Itabuna-João Pessoa. Eram veículos vindos do Rio, ou São Paulo. Eu embarcava “em trânsito”, no termo rodoviário.

Assim, já me deparava com uma lotação exausta de mais de um dia de viagem, alguns 400 km solo baiano adentro e mais umas 10h de viagem a seguir no mesmo estado.

Não tardava a começar os impropérios. Até a última “Mainha” da Bahia era amaldiçoada.

“Essa mizera de estado não acaba nunca…”

“Ô Bahia infeliz pra ser grande”

“Queria chegar no aniversário de mainha pra dar o fogão de presente a ela”

É, típico do nordestino sofrido. Ainda se alimentava este imaginário de eldorado com o sul. E os que iam mantinham nos que ficavam a idéia de vida próspera, de que estavam crescendo na vida, mesmo passando por todo tipo de perrengue nas bandas do sul.

Um outro companheiro grita do outro lado do busu:

-E na sua cidade não tem Armazém Paraíba, não? Você comprou um fogão em “Sum Paulo” para arrastar por 2 mil quilômetros até os cafundó da Paraíba?

Desconcertado, o filho orgulhoso não sabia o que responder. Talvez porque não tivesse resposta.

Era apenas uma vaidade maior trazer o utensílio doméstico do lugar onde foi desbravar o mundo.

Já aventurei viajar com o Tom de bilhete único, arriscando carregá-lo no colo por quase 24 horas. Uma senhora de alma nobre se afeiçoou a nós e cedeu o meio das poltronas para o Tom. Ainda lembro do olhar generoso dela.

Solidariedade, empatia, vínculos de carinho, mesmo que após apenas algumas poucas horas de convivência e que seja um laço passageiro. No íntimo sabia que muito provavelmente jamais reencontraria qualquer dos companheiros de martírio rodoviário. Mas era intenso e autêntico daquele modo.

Em outra jornada com Tom ainda bebê, pouco mais de um ano de idade…

Dois simpáticos beberrões, enternecidos pela figurinha pequena e afeiçoados ao papo com o pai, resolveram presentear a criança em uma das inúmeras paradas.

Um bichinho de pelúcia gentilmente escolhido e presenteado entre baforadas, mensagens amorosas e sons infantilóides emitidos entre goladas nas latas de schin, melhor, Nova Schin ainda à época. Uma joinha, mas duas figuras carismáticas.

A memória afetiva é uma coisa tão sublime que transforma até as agruras em magia nas nossas lembranças. Tudo vira história saudosa e bela.

Fonte: Marcos Thomaz
Créditos: Polêmica Paraíba