Opinião

CPMI CLASSIFICA GAZETA DO POVO COMO 'FAKE NEWS': quem vigia os vigilantes? - por Felipe Nunes

Quem vigia 0s vigilantes?, perguntou o poeta Décimo Juvenal, nos primeiros anos da Roma antiga, e também o filósofo Platão, em A República, ao refletir sobre os déspostas e tiranos de sua época.

Quem vigia 0s vigilantes?, questionou o poeta Décimo Juvenal, nos primeiros anos da Roma antiga, e também o filósofo Platão, que em A República refletiu sobre os déspostas e tiranos de sua época. Trago a expressão, que se tornou célebre no mundo em diferentes contextos, para refletir sobre o Brasil e especialmente sobre as medidas que visam combater as fake news que estão em debate no Congresso Nacional. Um tema pertinente para este domingo (07), em que se comemora o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa.

Não restam dúvidas de que a desinformação é um dos maiores problemas da era contemporânea e de que é dever de cada indivíduo trabalhar para proteger a sociedade dos danos causados pelas inverdades divulgadas em massa nas redes sociais. Mas a censura sofrida pelo jornal centenário Gazeta do Povo, na chamada ‘CPMI das fake news’, que funciona atualmente no Congresso Nacional, é só mais uma sobeja prova de que colocar o Estado como juiz da verdade, numa democracia, não é a melhor solução para se combater notícias falsas.

A pretexto de apontar os veículos não confiáveis e que estariam disseminando conteúdo falso, o relatório da CPMI, arbitrariamente, apontou o endereço eletrônico da Gazeta como propagador de fake news, sem nenhum parâmetro claro ou justificativa plausível para tal, deixando ainda mais claro o viés político da famigerada comissão e o perigo que é entregar nas mãos de parlamentares o poder de decidir sobre o que viria a ser uma notícia verdadeira. A Gazeta é um jornal paranaense, sério, de credibilidade, e talvez a única falha que possam lhe apontar é o fato de não ser um veículo ideologicamente engajado. A investigação da CPMI, ora protegida, ironicamente, por uma cobertura bastante focalizada, recebeu duras críticas da imprensa e de entidades representativas, como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABraji) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ).

“Estamos cientes de que não existe uma metodologia cientificamente comprovada, que possa ser aceita como suficiente para classificar um ou mais canais de informação como de ‘fake news”, recuou a CMPI por meio de nota técnica. Nenhuma surpresa, pois essa não é e nem deve ser a função do Estado, que já dispõe de mecanismos que podem ser usados em casos de notícias falsas que culminem em crimes contra a honra ou a imagem de uma pessoa. Tentar criar dispositivos além dos que já existem na legislação, no atual ambiente político, é um gesto no mínimo duvidoso.

Conforme destacou a própria Gazeta do Povo, após o recuo da CPMI, o presidente da ABRAJI, Marcelo Träsel, chamou a atenção não só para a comissão ora contestada, mas para o projeto de lei que tenta genericamente criminalizar ‘fake news’. Para Träsel, o caso da Gazeta do povo “demonstra os riscos de se gravar em lei um conceito de desinformação e deixar a cargo do Estado a classificação de uma notícia como falsa ou verdadeira”. Segundo ele, “por sorte, se trata apenas da opinião de consultores legislativos, não de uma sentença judicial. Esperamos que o caso sirva de alerta para os congressistas que pretendem aprovar a toque de caixa, em meio a uma crise sanitária e econômica, leis sobre o tema, sem discussão ampla e tranquila com os jornalistas e com a sociedade”, acrescentou.

Pasmem! Será que um sistema ineficiente, subordinado a políticos movidos a interesses diversos e muitas vezes obscursos, teria de fato a estatura ou legitimidade para determinar sobre notícias falsas ou verdadeiras? Antes de findar a semana, outro motivo para desconfiança: a CNN Brasil levou ao ar uma reportagem mostrando como a deputada Joice Hasselmann, uma das maiores defensoras da comissão, supostamente exige de seus colaboradores que trabalhem espalhando notícias falsas nas redes sociais contra algozes da parlamentar. Funcionários entrevistados pela emissora disseram que o material fornecido por ela à CPMI são forjados. Será o caso de criar uma CPMI da CPMI? À parlamentar, cabe o beneplácito da dúvida e a presunção de inocência. Mas, em quem confiar?

Reafirmo: é urgente que jornalistas, o povo, entidades representativas trabalhem contra as notícias falsas. As autoridades também deveriam dar o exemplo. Mas isso se faz com os instrumentos que já dispomos: democracia, liberdade de imprensa, liberdade de expressão, educação. Mais liberdades, e não o contrário. São esses os caminhos que nos permitem ir de encontro à desinformação. A mentira, quando contém crime, está contemplada na legislação e deve ser punida severamente.

Aprovar uma lei genérica contra “notícias falsas”, no atual contexto, pode abrir caminhos para os piores arbítrios, especialmente quando estivermos sob governos com tendências fascistas, isto é, de expansão do Estado em todas as esferas, inclusive no controle da informação. Não custa lembrar: somente ditaduras e regimes totalitários limitam as liberdades de pensamento, de expressão e criam censuras disfarçadas de filtros. Sem exageros, foi assim que a China prendeu jornalistas e médicos que alertaram para o surgimento da presente pandemia do novo coronavírus. Considero que isso não seria saudável para o Brasil, a despeito da forte oposição que o jornalismo profissional já enfrenta em nosso país (ainda sem a censura oficial em forma de lei).

Por fim, considero que chancelar o trabalho de uma CPMI que censura um jornal tradicional e aplaudir uma nova legislação que pode punir os divergentes, é anti-democrático. E me desculpem, é o mesmo que endossar a omissão da totalidade das mortes do novo coronavírus no boletim do Ministério da Saúde, que segundo a fonte oficial, assim o faz em nome ‘da verdade’.

Peço licença para mudar a frase de Juvenal e provocar uma nova reflexão: quem vai vigiar os vigilantes quando eles se tornarem super-poderosos?

Felipe Nunes – jornalista formado e diplomado. Aluno do Mestrado em Jornalismo do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (PPJ-UFPB).

Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Felipe Nunes