Nonato Guedes
O empresário, advogado e ex-vice-prefeito de Campina Grande Ronaldo Cunha Lima Filho (Ronaldinho), utiliza sua conta em rede social para recapitular o episódio da cassação do mandato do seu pai, o poeta e ex-governador Ronaldo Cunha Lima, já falecido, no final da década de 60, de forma arbitrária, pelo regime militar que havia se instaurado em 1964 a pretexto de “salvar a democracia” da ameaça comunista no Brasil. Eram tempos difíceis e o relato de “Ronaldinho” registra a reação indignada do pai, então iniciando mandato como prefeito de Campina Grande, conquistado nas urnas, diante da violência da ditadura, que mostrava suas garras afiadas. Confrontado com as reminiscências dolorosas, o empresário indaga: “O que faz um cidadão de bem desejar o retorno de um tempo tão sinistro?”.
Segue o depoimento de Ronaldo Cunha Lima Filho: “O dia era 13 de março, o ano 1969, fazia 45 dias que o meu saudoso pai, o Poeta Ronaldo Cunha Lima, havia assumido a prefeitura municipal de Campina Grande, depois de vencer uma eleição histórica. Morávamos todos, eu, minha mãe Glória, Cássio, Glauce e Savigny na modesta casa de telha aparente da nossa querida avó Nenzinha, na pacata rua Solon de Lucena. A casa era simples, mas muito aconchegante, tinha quintal e pés de sapoti, oiti, manga, goiaba e abacate. Naquele tempo eu brincava de peão, coruja, patinete, esconde-esconde…eu era uma criança feliz. Naquele tempo, também, vivíamos sob o jugo de uma ditadura militar, que teve início no dia 31 de março de 1964. Dentre os atos baixados pelo regime ditatorial, o AI-5 foi sem dúvida o mais cruel e ignóbil deles. Voltando ao dia 13 de março: era noite, estávamos eu, Glauce e Cássio brincando sobre a cama e numa rede próxima estava meu pai com um rádio de pilha colado à orelha, escutando a relação dos nomes das autoridades que eram cassadas pelo regime militar, sem que fosse dada qualquer explicação.
O que lembro com precisão daquele instante é o “puta que pariu” que meu pai grita e na sequência joga o rádio no chão, que se espatifa. Foi uma cena dramática. Ele tinha acabado de escutar o nome dele dentre os cassados. O mundo desabou. E desabou também uma forte chuva. Parecia que o céu chorava por aquela inimaginável injustiça. Nossas vidas mudaram radicalmente. As ditaduras, por não representarem a vontade da maioria, se impõem pelo medo. Todos viviam com medo. Tendo perdido o mandato que lhe fora outorgado pelo povo de Campina Grande e não podendo exercer o cargo de promotor público, para o qual havia passado mediante concurso público, o poeta viu-se obrigado a ir para São Paulo, onde foi buscar um meio de garantir o sustento da família, que só tempos depois também foi para São Paulo. Na avenida Augusta, como vendedor de sapato, foi esse o primeiro emprego do prefeito e promotor cassado. A história continua. É longa e extraordinária. Aí eu me pergunto: o que faz um cidadão de bem desejar o retorno de um tempo tão sinistro?”.
Situações dramáticas como as de Ronaldo Cunha Lima reproduziram-se por todo o país, em períodos alternados da ditadura militar, uma página que envergonha a nossa História. Houve casos mais graves e pungentes, de pessoas que foram torturadas nos porões dos organismos militares, de ativistas que “desapareceram” misteriosamente ou sofreram atentados, de militantes exilados, degredados sem apelação, de opositores da ditadura alijados da cátedra, expulsos dos tribunais, proibidos de se manifestar, porque a censura já imperava e o Estado de Direito era apenas uma miragem no horizonte sombrio. Como vereador em Campina Grande e deputado estadual, Ronaldo Cunha Lima participou dos acontecimentos que agitaram o país com a renúncia de Jânio Quadros e a manobra para impedir a posse de João Goulart. O jovem vereador, além de ter tomado posição em prol da posse de Goulart, apresentou projeto de lei para que o espaço entre os prédios da Câmara Municipal e da Prefeitura fosse denominado de “Largo da Legalidade”, sugerindo ainda que no recinto fosse erguido um busto do governador Leonel Brizola.
Em 1962, na condição de deputado estadual, alinhou-se ao bloco da Frente Parlamentar Nacionalista. Em 1964, ocupou a tribuna da Assembleia Legislativa para defender a normalidade democrática e constitucional. No dia 15 de junho de 1964, completados menos de três meses da deposição de Goulart, Ronaldo foi a Campina Grande solidarizar-se com seu amigo pessoal Newton Rique, cassado no dia anterior. Em 1968, ele mesmo foi candidato à prefeitura, consciente de que estava desafiando a ira do regime de arbítrio. Permaneceu apenas 45 dias no posto, cassado implacavelmente pelos algozes do regime. Suportou o período de ostracismo com dificuldades mas com dignidade. Teve que sobreviver entre Rio e São Paulo, montando banca de advocacia própria e se dedicando a outras atividades extra-profissionais. Enfrentou uma segunda punição, quando em busca da sobrevivência foi impedido de seguir até o fim como estrela de um famoso programa de TV, o “J. Silvestre”, na extinta TV Tupi, onde respondia a perguntas sobre o poeta paraibano Augusto dos Anjos.
Somente no final da década de 80, já então no programa “Sem Limite”, apresentado pela TV Manchete por Luiz Armando de Queiroz, Ronaldo concluiu sua incursão televisiva. A visibilidade no vídeo abriu as portas para seu retorno à atividade política, coincidindo com a reabertura democrática. Voltou consagrado, nos braços do povo, à prefeitura de Campina Grande, em 1982, cumprindo mandato de seis anos, marcado por dinamismo poucas vezes visto na história da cidade. O crescimento da sua liderança foi comprovado na eleição do filho, Cássio, para sucedê-lo. Em 1990, elegeu-se governador da Paraíba, em segundo turno, num embate memorável com Wilson Braga. Também foi deputado federal, senador e ocupou papéis de projeção na conjuntura nacional, chegando a ser cogitado para candidato a vice-presidente da República em chapa do PMDB. Ronaldo foi uma das vítimas sequeladas do AI-5, o “sinistro” Ato de intimidação que ditadores como Bolsonaro querem reimplantar no País. A História não pode ser esquecida – esta é a grande lição que fica para os brasileiros.
Fonte: Nonato Guedes
Créditos: Nonato Guedes