Com a filhocracia mandando a todo vapor em Brasília (os filhos mimados do presidente Jair Bolsonaro aprontaram em grande estilo a primeira exoneração de um ministro – o Gustavo Bebianno), os espiões da Abin, o serviço não tão secreto do governo, tentam reocupar espaços na arte de bisbilhotar a vida e as ações de supostos adversários do poder. Os suspeitos são os de sempre: procuradores, jornalistas, políticos, religiosos e movimentos sociais. É a ressurreição do fantasma do patrulhamento ideológico e da perseguição política, atos abomináveis que fazem lembrar não apenas a longa noite das trevas, na ditadura militar, mas até mesmo governos petistas recentes que também se dedicaram ao ofício.
A colunista Dora Kramer, na revista “Veja”, comenta a preocupação do Planalto com o Sínodo sobre a Amazônia, um evento da Igreja Católica que reunirá bispos em Roma em outubro para discutir problemas como a devastação da floresta, a situação dos povos indígenas e as alterações climáticas da Terra. Para a Abin, o cardápio do evento reproduz uma agenda de esquerda e deverá ser usado pelo clero progressista da Igreja Católica para criticar o presidente Bolsonaro e desgastar a imagem do governo em nível internacional. Relatórios produzidos pela Abin classificam a Igreja como braço do PT e candidata a assumir o papel de liderar a oposição contra o governo. A conclusão dos arapongas é óbvia: é preciso neutralizar isso aí.
Para Dora Kramer, o presidente Bolsonaro tem vocação para causas perdidas, a exemplo da briga com a Igreja. Já fizera isso ao instigar a China, provocar os países árabes ao ameaçar mudar a embaixada do Brasil para Jerusalém, afrontar a legião de crenças e valores diversos ao insistir na pauta de costumes caros apenas a uma parcela dos brasileiros. “Evidentemente são pertinentes as atenções devidas a questões que envolvem a estratégica Amazônia. Mas vai uma distância oceânica daí até se considerar que essas preocupações possam explicar ou justificar a interferência do governo no conteúdo das discussões do sínodo de bispos sobre a região a ser realizado em Roma. A ideia seria “monitorar” o debate desde os preparativos na tentativa de neutralizar o evento. Várias instâncias do governo estariam sendo mobilizadas e fala-se até na intenção de pedir à Itália que interceda. Bolsonaro aposta na gratidão do governo italiano pela cumplicidade do governo brasileiro na operação que levou à prisão e extradição de Cesare Battisti, apontado como terrorista e que acabou sendo capturado na Bolívia, depois de flanar por um bom tempo no Brasil.
Dora Kramer ironiza que se tenta a intervenção do governo italiano num evento patrocinado pelo Estado independente do Vaticano, o que só reforça a impressão de que o governo Bolsonaro está perdido em muitas coisas – sobretudo na questão da diplomacia. “Seria apenas perda de tempo não fosse uma tolice digna do sujeito da clássica anedota da casca de banana do outro lado da rua. É óbvio que essa movimentação intervencionista não vai funcionar. Um tiro certo no peito do atirador”, vaticina Dora Kramer. Para ela, o que se está tentando pôr em prática fere o princípio da separação entre a Igreja e o Estado, desconsidera a relação custo-benefício da compra de uma briga com os padres (genericamente falando), dá vazão a instintos autoritários, ignora a força e a presença da Igreja Católica a despeito do crescimento das denominações evangélicas, granjeia mais adversários num setor já adverso, contrata uma crise desnecessária – e para quê? Para nada, além de postar-se atrás de uma enorme vidraça das mais convidativas às pedras nem digo da oposição formal, mas da contestação de várias e diferentes camadas sociais”.
E arremata Dora Kramer: “Para quem tem ministros e personagens ao redor que, se não estão, deveriam estar na marca do pênalti, trata-se de inequívoca vocação para causas perdidas”. O que é lamentável é que o governo de Bolsonaro cada vez mais vá se desgastando perante a opinião pública, justamente por causa das influências a que o presidente se torna vulnerável, nascidas dentro de casa, onde filhos despreparados fazem chantagem emocional e política e conseguem amolecer o coração do capitão para as suas sandices, as suas brincadeiras de mau gosto. Sei não, mas algo me diz que com o tempo o presidente Jair Bolsonaro corre o risco de ser derrubado – não pela Igreja ou pela oposição, mas pelos filhos, os grandes adversários que ele cultiva em cativeiro. E pensar que já tínhamos virado páginas como essas…
Fonte: Os Guedes
Créditos: Nonato Guedes