De repente as caixas de som irrompiam naquele arranjo de dedilhado suave ao piano com vozes de coral em Ó-Ó-Ó-Ó…
Era o indicativo da hora do suplício.
Calma, apesar de não comungar da fé, isso nada tem a ver com qualquer heresia, menos ainda blasfêmia da minha parte.
A questão é que a Ave-Maria emitida em elevados decibéis pela rádio difusora de Buerarema trazia a mim, criança, o desgosto do fim da farra e a despedida dos colegas na rua.
Era o prenúncio do crepúsculo.
Confirmado minutos depois pelo Sol desaparecendo por trás da serra.
Até o “hino extraoficial” bueraremense, sabiamente, celebra o nascimento, não o pôr do sol:
“Raiou a madrugada, Pai Sol mandou lhe avisar, que é dia lindo na Serra do Jequitibá”.
Por sinal, encontrei este disco do primo distante Marcelo Ganem, aqui nas bandas da Paraíba, mais especificamente no acervo da Rádio Tabajara, onde trabalho.
Uma satisfatória e orgulhosa coincidência.
Voltando ao ocaso.
Talvez os mais jovens desconheçam, mas em todos os cantos deste país, de norte a sul, religiosamente, se executava a Ave Maria nas rádios às 18 horas.
Tradição tão nacional quanto programa especial de Roberto Carlos aos domingos.
-Deixa de rezar o terço e adianta logo este rosário ai…
Já grita o impaciente de pouca fé.
Sigamos para a tristeza do meu entardecer.
Estas indeléveis memórias lamentosas que representavam a hora de abandonar a arrilia, voltar para casa, jantar e saber que iria chegar a hora de dormir, permanecem comigo até hoje.
Embora ame a atmosfera solar e seja um notívago convicto, ainda não me reconciliei, especificamente, com o interlúdio entre dia e noite, aquelas frações de minutos tormentosas.
Nem sei se conseguirei algum dia.
É a soberania dessa força, potência máxima da memória afetiva.
Dentre tantas e possíveis variáveis, o que somos sempre carregará visgos das lembranças do que fomos.
Uns mais que outros.
Implacavelmente, sou invadido por um vazio no crepúsculo.
E olha que moro em João Pessoa, um dos, se não o mais belo pôr-do –sol do Brasil, quiçá da Via Láctea.
Nem o espetáculo único de cores, alaranjado, arroxeado, ou multicolor, me aplaca a melancolia.
Por outro lado, imagina para quem tem uma relação tão avessa com o entardecer, ter que atender aos desejos desbravadores dos visitantes de conhecer o badalado pôr-do-sol do Jacaré!?!?
Ir tantas vezes assistir Jurandy do Sax, em cima de uma canoa, executar Bolero de Ravel com seu sax e ritual xamânico foi a gota d`água.
Deu até saudades da Ave-Maria.
Fonte: Marcos Thomaz
Créditos: Polêmica Paraíba