O Comando da Aeronáutica alegou ter se baseado no princípio da “boa-fé administrativa” para admitir um homem acusado de chefiar uma milícia na cidade de Marataízes, no litoral do Espírito Santo.
Gilbert Wagner Antunes Lopes, o Waguinho, de 42 anos, teria apresentado documentos falsos e omitido os processos em que é réu na Justiça, e esses fatos não teriam sido constatados inicialmente pela Força. Com isso, o miliciano ficou empregado por quase dois anos na Aeronáutica. Bastava uma pesquisa em um sistema de buscas, como o Google, para saber do passado do suspeito.
Como revelou o Metrópoles, Waguinho ingressou como terceiro-sargento temporário do Quadro de Sargentos Convocados (QSCon) da Força Aérea Brasileira (FAB) em maio de 2018. Ele foi expulso da corporação apenas em março do ano passado.
O miliciano carrega consigo uma série de denúncias de crimes hediondos e é acusado de ter levado a Liga da Justiça, grupo paramilitar do Rio de Janeiro, para o litoral do Espírito Santo. A facção tem como símbolo o escudo do Batman.
Em relatório enviado ao Ministério Público Federal (MPF), o Comando da Aeronáutica assegurou, inicialmente, que a atuação da Força durante o processo seletivo do miliciano, em 2018, se baseou nos princípios da “vinculação ao instrumento convocatório”.
“A atuação da Administração Pública teve como base o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, corolário do princípio da legalidade, de modo que a seleção e a incorporação do Sr. GILBERT WAGNER ANTUNES LOPES se sustentaram em um regramento predeterminado, estabelecido em edital específico”, diz o Serviço de Recrutamento e Preparo de Pessoal da Aeronáutica do Rio de Janeiro, no relatório ao qual o Metrópoles teve acesso.
“Assim sendo, como o voluntário obteve aprovação em cada etapa da seleção e tornou-se habilitado à incorporação, observa-se que as exigências do Aviso de Convocação foram cumpridas do início do procedimento até o seu encerramento definitivo, não havendo que se falar em ilegalidade no processo seletivo”, justifica.
O miliciano participou e foi aprovado na seleção de profissionais de nível médio voluntários à prestação do serviço militar temporário, na especialidade administração.
Em seguida, a FAB explica, em resposta ao ofício do MPF, que, além de ter como base o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, a seleção também se lastreou nos princípio da “boa-fé administrativa” e da “proteção à confiança legítima”.
“A boa-fé administrativa diz respeito à lealdade, correção e lisura do comportamento das partes, que devem comprometer se com a palavra empenhada, enquanto que a proteção da confiança legítima é atributo da segurança jurídica, já que o ato administrativo produzirá efeitos jurídicos imediatos ainda que possua vícios, não podendo ser desfeito sem um mínimo de razoabilidade para tanto, já que a confiança depositada no ato administrativo é digna de tutela jurídica”, argumenta a Aeronáutica.
Falsidade ideológica
Devido à entrada da FAB, Waguinho foi denunciado, em julho do ano passado, pela 3ª Procuradoria de Justiça Militar no Rio de Janeiro pelos crimes de falsidade ideológica (artigo 312 do Código Penal Militar) e uso de documento falso (art. 315).
De acordo com o Ministério Público Militar (MPM), Gilbert Wagner apresentou, para participar do concurso, o requerimento de inscrição com “declaração e documentação falsas, induzindo e mantendo a Administração Militar em erro”. Ao MPF, a Aeronáutica disse que entendeu que a incorporação do miliciano às fileiras da Força Aérea Brasileira estava “repleta de vícios que a tornava ilegal”.
“A solução da sindicância teve como conclusão a existência de vício insanável na incorporação do Sr. GILBERT WAGNER ANTUNES LOPES às fileiras da Força Aérea Brasileira, tendo em vista que o mesmo apresentou informações inverídicas que induziram a Comissão de Seleção Interna ao erro, havendo indícios de crime, já que as datas indicadas no documento apresentado pelo Sr. GILBERT WAGNER ANTUNES LOPES para comprovação de experiência profissional sobrepõem-se às datas que o mesmo encontrava-se preso, de modo que o Sr. GILBERT WAGNER ANTUNES LOPES mentiu na declaração de não estar respondendo a inquérito policial, comum ou militar, a processo criminal em qualquer estado da Federação, na Justiça Federal ou Militar ou cumprindo pena de qualquer natureza”, diz.
Veja, a seguir, documento em que o miliciano declara não estar respondendo a processos criminais. A declaração foi entregue em 2018.
Waguinho, no entanto, já foi preso e alvo de operações da Polícia Civil devido a homicídios no Espírito Santo. Hoje, é réu em várias ações penais e chegou a ser condenado, em uma delas, a sete anos de reclusão pela tentativa de assassinato, em 2010, de um “usuário de drogas” que estaria envolvido em inúmeros furtos na cidade capixaba.
No entanto, a fase processual desse caso foi anulada, em junho deste ano, por violação ao juiz natural, e ele foi direcionado para novo júri, desta vez na comarca de Marataízes.
Miliciano e justiceiro
Como narrou o Metrópoles, em 19 de maio de 2010, Gilbert Wagner teria efetuado vários disparos contra o usuário de drogas e, duas semanas depois, dado uma coronhada na cabeça dele. A vítima não morreu, mas, em consequência das lesões, foi submetida a uma cirurgia. Na delegacia, ela disse que Waguinho também é conhecido em Marataízes como justiceiro na região.
À época, o Ministério Público do Espírito Santo (MPES) apontou que Gilbert Wagner faz parte de uma “verdadeira milícia, […] que a pretexto de promover a segurança, passou a realizar um verdadeiro extermínio neste município, sempre agindo através da violência armada”. O Metrópoles teve acesso à denúncia da procuradoria.
Ao indiciar Waguinho em 2011 pela tentativa de homicídio de um usuário de drogas, o Ministério Público apontou que o miliciano “é voltado à prática criminosa” e responde por inúmeros outros processos criminais.
A Promotoria de Justiça Cumulativa de Marataízes relatou que Gilbert Wagner pratica reiteradas condutas ilícitas na cidade, “semeando o receio e a insegurança entre as vítimas e demais membros da coletividade”. Ele foi acusado junto de Anderson Rodrigues Mendonça, que morreu no início deste ano e, por isso, teve a pena extinta.
“Os denunciados recebem apoio e cumplicidade de vários indivíduos numa espécie de associação, visando perpetuar a permanência do grupo do município e, assim, legitimar uma série de outras práticas criminosas, além de ganhar força para a instalação de uma espécie de milícia, que age através da violência armada, ‘limpando’ aqueles que vêm incomodando a coletividade e, em troca, recebem pelo trabalho”, relata o Ministério Público estadual.
“Grupo que a cada dia, a cada morte, vem ganhando força dentro do município de Marataízes e adjacências”, acrescenta um relatório de missão elaborado pelo Núcleo de Repressão às Organizações Criminosas e à Corrupção, da Secretaria de Segurança Pública do ES.
O relatório, ao qual o Metrópoles teve acesso, detalha também que, à época da denúncia, em 2011, o grupo paramilitar já vinha se organizando há algum tempo. Waguinho é apontado como mentor da milícia na cidade do Espírito Santo, pois teria trazido ideias do Rio de Janeiro – onde, segundo o MPES, fazia parte de grupos de extermínio – e tentado implantá-las em Marataízes.
“A mentalidade da facção é a mesma do temido grupo conhecido como Liga da Justiça, que tem como símbolo o escudo do Batman, cujo adesivo já está sendo observado em vários veículos rodando o município [de Marataízes]”, assegura o núcleo de investigações.
Além de crimes contra a vida, a milícia chefiada por Waguinho é suspeita de comprar e vender carros alienados de origem criminosa, comercializar armas de fogo e arrombar bancos da cidade. “Torna-se assim necessária uma rápida resposta dos órgãos de segurança, visando impedir que o litoral sul capixaba se torne um quintal do Rio de Janeiro”, pontuam os investigadores.
Outro lado
Em nota, a Aeronáutica informou que, mediante a apresentação dos documentos, que possuem fé pública, “a Instituição não vislumbrou indícios que a levassem a presumir falta de idoneidade moral, naquele momento inicial, em relação ao então voluntário”. E ressaltou que “no ordenamento jurídico pátrio não há presunção de má-fé, a qual deve ser comprovada, bem como não há presunção de culpabilidade”.
“Entretanto, logo após tomar conhecimento de eventuais irregularidades em relação ao recrutamento de Gilbert Wagner Lopes Antunes, o Comando da Aeronáutica, valendo-se dos procedimentos legais, promoveu seu desligamento da Aeronáutica, em observância ao ordenamento jurídico vigente”, prosseguiu a Força Aérea.
Por sua vez, a defesa do então militar Gilbert Wagner Antunes Lopes, feita pelo advogado Leonardo da Silva, ressaltou que o cliente é declarado doente mental incurável e que se encontra acometido por outras doenças graves.
O advogado ressaltou ainda que todos os fatos questionados na matéria “já estão sendo tratados dentro da seara jurídica e mantendo o sigilo, respeito e resguardo das leis, inclusive a citada alhures, frente a dita condição de saúde de meu cliente”.
“A defesa do então militar, doente mental incurável, resguardado por lei, só se manifestará após ser devidamente notificada em sede do procedimento inquisitorial em trâmite no MPF”, complementou.
Fonte: Metrópoles
Créditos: Metrópoles