Publicado originalmente na Folha. Leia aqui.
Enquanto as notícias da tomada de Cabul pelo Taleban chegavam em cascata, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, correu para falar à rede CNN.
“Isso não é Saigon”, disse, passando o recibo sobre a comparação inevitável de helicópteros levando funcionários da embaixada americana na capital afegã para o aeroporto da cidade com a fuga desabalada de diplomatas da capital do sul vietnamita enquanto as forças comunistas do norte a conquistavam, em 1975.
As guerras do 11 de Setembro não são o conflito do Vietnã, mas ambos foram perdidos pelos Estados Unidos —o que, de resto, tornou-se uma incômoda rotina para a maior potência militar do mundo.
O governo de Joe Biden resolveu cumprir um acordo mal costurado pelo antecessor, Donald Trump, amparado em pesquisas que mostram o fastio absoluto do americano médio com uma guerra que hoje nada diz a ele.
De fato, 20 anos depois da invasão e uma década após o assassinato de Osama bin Laden, politicamente era difícil justificar a presença constante no Afeganistão.
Desde que anunciou a aceleração da retirada para 31 de agosto, Biden repetiu diversas vezes que os problemas afegãos deveriam ser resolvidos pelo povo do país.
O Taleban levou o conselho a sério, rasgou as promessas de sentar à mesa com o marionete Ashraf Ghani e, em uma “blitzkrieg” descomunal, humilhou um bem equipado Exército afegão nas duas últimas semanas.
Que fim levarão os modernos aviões de ataque Super Tucano brasileiros doados pela Força Aérea dos EUA para o governo em Cabul é uma incógnita que simboliza a impotência da estratégia adotada por Washington de reconstrução nacional.
Talvez o Taleban se torne o primeiro grupo fundamentalista islâmico com uma Força Aérea no mundo, além de herdar centenas de blindados e veículos modernos, além de armas entregues pelos americanos para seus aliados.
Houve a clara incompreensão dos processos políticos num país em que as relações tribais dão o tom a minúcias do cotidiano.
Os personagens verdadeiramente poderosos do teatro democrático ocidental no país eram simplesmente os mesmos senhores da guerra que lutaram contra os soviéticos, entre si, contra e a favor do Taleban. Gente como Ismail Khan, ora detido pelo Taleban, ou Abdul Rashid Dostum, que sumiu de Cabul neste domingo (15).
A imposição de dois presidentes impopulares eleitos em disputas bastante nebulosas, Hamid Karzai e Ghani, só explicitou essa incompreensão. Eram pessoas sem base política —o atual líder só havia voltado ao país em 2001, tendo morado a vida toda nos EUA.
Talvez fazer as malas fosse a única opção a Biden, o quarto presidente a lidar com aquele cipoal. Mas, a despeito de ele não ser o responsável final pela confusão, um trabalho de duas décadas, é evidente que a conta ficará sobre a sua mesa.
Se o Afeganistão voltar a uma espiral de brutalidade contra mulheres e minorias, algo que o Taleban de forma pouco crível diz que não acontecerá, Biden será cobrado. Se o país virar um protetorado chinês, talvez partilhado com russos, turcos e americanos, idem.
Se por algum motivo houver uma reorganização de forças contra o Taleban e a guerra civil irromper, o presidente americano será o responsável, ainda que ele não tivesse nada a ver com as decisões tomadas lá atrás por George W. Bush, que precisava de um inimigo claro para golpear após o 11 de Setembro.
Por fim, se o Afeganistão virar novamente um santuário para terroristas dispostos a explodir alvos no Ocidente ou degolar visitantes incautos, será para os EUA que o mundo olhará.
Que os projetos de “nation building”, construção nacional baseada em princípios democráticos, eram uma balela, o Iraque já havia provado de forma clara. Cabul nas mãos talebans é uma cobra que enfim mordeu o próprio rabo.
Isso se insere num contexto geopolítico. Não é casual que Vladimir Putin e Xi Jinping falem sempre a aliados e clientes que não se importam com a coloração de seus regimes. Até aqui, o Ocidente vem perdendo essa guerra.
O potencial de um desastre político para o democrata é bastante alto, mesmo que tudo saia mais ou menos bem: ou seja, que o Taleban consiga formar um governo que integre parte da administração anterior e se atenha ao que havia prometido no ano passado em termos de respeito a direitos humanos.
A história afegã não permite muito otimismo quanto a essa possibilidade, ainda que a sociedade local não seja a mesma após 20 anos de contato com o Ocidente e com a experiência de ter algumas liberdades antes inauditas.
Além disso, diferentemente da ruína completa herdada em 1996, quando virou governo pela primeira vez, agora o Afeganistão tem um grau razoável de integração econômica com seu entorno, a começar por China e Turquia. Será difícil fechar totalmente as portas.
Se a sociedade terá força para fazer frente à proverbial burca que o Taleban poderá querer impor a ela, é algo ainda a ver. Se não o tiver, terá a quem culpar na Casa Branca.
Fonte: Folha
Créditos: Igor Gielow