Com a guerra na Ucrânia entrando na sua quarta semana, o presidente russo Vladimir Putin elevou drasticamente o tom de seu discurso, e além de direcionar seus ataques às lideranças de Kiev, também atacou setores da população russa que chamou de “falsos patriotas” e “escória”. A fala ocorre em meio ao aumento da repressão interna àqueles que discordam da guerra iniciada no final de fevereiro contra a Ucrânia — segundo lei aprovada na semana passada, quem mencionar a palavra “guerra”, ao invés de “operação militar especial”, nome oficial da ofensiva, está sujeito a multa e prisão.
— Qualquer povo, e ainda mais o povo russo, sempre será capaz de distinguir verdadeiros patriotas da escória e dos traidores, e simplesmente cuspi-los como uma mosca que acidentalmente entrou em suas bocas — disse Putin, durante uma reunião, na noite de quarta-feira, para discutir medidas de apoio econômico às regiões. — Estou convencido de que uma autopurificação tão natural e necessária da sociedade só fortalecerá nosso país, nossa solidariedade, coesão e prontidão para responder aos desafios.
Desde o início da guerra, cerca de 15 mil pessoas foram presas em protestos contra o governo, e um número ainda desconhecido de russos deixou o país rumo à Europa, EUA e outras nações da ex-URSS, como o Quirguistão e o Cazaquistão. Além do medo da repressão, muitos tentam escapar dos impactos das sanções mpostas pelo Ocidente, que já começam a ter efeitos sensíveis na economia russa, em especial na inflação.
No discurso, Putin voltou a atacar os países do Ocidente, como havia feito em outro discurso a seus ministros mais cedo na quarta, dizendo que eles “simplesmente não precisam de uma Rússia forte e soberana” e que não perdoarão o país por “defender seus interesses nacionais”.
— Lembramos como eles apoiaram o separatismo, o terrorismo, encorajando terroristas e bandidos no norte do Cáucaso. Como nos anos 1990, início dos anos 2000, eles agora novamente, mais uma vez, querem repetir sua tentativa de nos pressionar, nos transformar em algo fraco, dependente, violar a nossa integridade territorial, desmembrar a Rússia da melhor maneira possível para eles. Não deu certo naquela época, e não vai dar certo agora — disse Putin.
O presidente destinou ataques aos milionários russos que, hoje, vivem no exterior — alguns deles vêm se afastando do Kremlin e até criticando a forma como Putin vem conduzindo a invasão da Ucrânia. Para ele, eles são uma espécie de “quinta coluna”, ou “traidores nacionais”, que ganham dinheiro na Rússia e hoje gastam suas fortunas em outros países.
— Não estou julgando de forma alguma aqueles que têm uma casa em Miami ou na Riviera Francesa, que não podem deixar de comer foie gras, ostras ou usufruir das chamadas liberdades de gênero. O problema não está nisso, mas no fato de que muitas dessas pessoas estão mentalmente localizadas no exterior, e não aqui, não com nosso povo, não com a Rússia — afirmou o presidente. — Isto é o que eles pensam, que pertencem a uma casta superior, a uma raça superior.
Nesta quinta-feira, ao ser questionado sobre as declarações do presidente, o secretário de Imprensa do Kremlin, Dmitry Peskov, confirmou que essa é mesmo a linha atual do governo russo.
— Em momentos difíceis, muitas pessoas mostram suas verdadeiras cores. Muitas pessoas estão se revelando, como dizemos em russo, traidores — disse Peskov, em entrevista coletiva.
Ele também deu uma resposta dúbia ao ser perguntado sobre o que Putin quis dizer com a expressão “autopurificação”.
— As pessoas desaparecem de nossas vidas por conta própria. Algumas pessoas estão deixando seus cargos, outras deixando suas vidas profissionais, algumas estão deixando o país e indo para outros lugares. É assim que essa limpeza está acontecendo.
Repressão
Em seus 22 anos à frente da Rússia, seja como presidente ou como um poderoso primeiro-ministro, foram raras as vezes em que Vladimir Vladimirovich Putin usou um tom tão agressivo em seus discursos ao falar dos próprios russos: um dos poucos exemplos foi visto em 2014, em meio à anexação da Crimeia e aos efeitos da Euromaidan, que derrubou um governo pró-Moscou em Kiev.
Como mencionou, em 2015, a jornalista russa Maria Lipman, o termo “quinta coluna” chegou a ser usado para descrever todos aqueles que atacavam a anexação da península e a participação de Moscou no conflito entre separatistas pró-Rússia e o Exército ucraniano na região de Donbass, no Leste da Ucrânia.
Naquele época, menciona Lipman, um cartaz localizado a poucas quadras do Kremlin mostrava imagens de políticos considerados “traidores” e integrantes de uma “quinta coluna”: entre eles, Boris Nemtsov, morto em 2015, Ilya Ponomarev, ex-deputado que deixou a Rússia em 2016, e Alexei Navalny, hoje preso e prestes a receber uma sentença por suposta fraude que pode ampliar sua pena em 13 anos.
Na atual ofensiva contra seus críticos, Putin, com o respaldo oficial do Parlamento — hoje virtualmente sem presença da oposição — aprovou medidas para restringir o já restrito espaço para protestos não aprovados pelas autoridades locais. Quem sair às ruas contra a guerra está sujeito a uma pena de até cinco anos de prisão.
Para quem espalhar notícias consideradas falsas ou que sejam consideradas nocivas às Forças Armadas, a punição pode chegar a até 15 anos em regime fechado. Mesmo quem não participa de protestos está sendo atingido pelas novas leis, que também são aplicadas a publicações em redes sociais — pessoas que deixam a Rússia afirmam que os agentes de fronteira estão vistoriando seus aplicativos de mensagens em busca de declarações vistas como nocivas.
Em publicação no Telegram, o advogado especializado em direitos humanos Daniil Berman disse, citando fontes nos serviços de segurança, que os agentes estão recebendo a orientação de acelerar a conclusão de processos de crimes econômicos porque, segundo ele, “em abril eles (os investigadores) serão sobrecarregados com casos criminais de ‘traidores do Estado’ e ‘traidores da nação'”. Autoridades russas, como o ex-presidente e hoje integrante do Conselho de Segurança do país Dmitri Medvedev, chegaram a sugerir o retorno da pena de morte para “prevenir crimes sérios”, sem detalhar quais seriam tais crimes.
Empresas alinhadas ao governo, como a gigante do setor de gáz, a Gazprom, também promovem a ideia de união em torno de Vladimir Putin: no começo do mês, o chefe da companhia, Alexei Miller, próximo ao Kremlin, enviou uma carta aos seus 500 mil funcionários afirmando que eles devem estar atentos a tentativas de “semear a discórdia que pode dividir o povo russo”.
“Hoje, mais que nunca, é importante que estejamos comprometidos com a causa comum, apoiarmos nosso presidente”, disse Miller, que aparece em listas de sanções dos EUA e da União Europeia. Para ele, apoiar Putin vai “preservar a Rússia como nós conhecemos e amamos”.
Fonte: O Globo
Créditos: Polêmica Paraíba