Era o começo da noite de 5 de março quando uma mulher de 24 anos encontrou três homens em uma estação de trem em Nápoles, na Itália.
Os três homens, que ela conhecia de vista, entraram num elevador com ela. E o que aconteceu nos 12 minutos seguintes tem dividido a Itália.
Os homens alegam que fizeram sexo consensual com a mulher. Ela afirma ter sido estuprada por eles no elevador.
O caso está sendo investigado.
‘Estou assustada e ferida’
O repórter da BBC James Reynolds se encontrou com a mulher numa praça, em Roma. A aparência jovem e a magreza da mulher chamaram atenção. O aperto de mão foi tímido.
Ela estava acompanhada do advogado, que logo anunciou que a mulher estava preparada para falar.
Reynolds quis saber por que ela decidiu falar sobre o caso. “Falar é a única forma de expressar minha dor. Comunicar é a melhor forma de obter justiça”, disse a mulher.
Quando perguntada sobre como ela estava, a mulher buscou na bolsa um pacote de lenços de papel. “Estou um pouco ferida. Cheia de medo. Estou assustada e ferida”, respondeu.
O jornalista quis saber como foi quando ela registrou a ocorrência. “Inicialmente, eles acreditaram em mim. Os advogados e os psicólogos no hospital em Nápoles… A violência ficou evidente no exame médico. Os policiais também acreditaram, assim como a promotoria. Mas a corte de apelação decidiu soltar dois dos caras.”
A mulher falou ainda que o fato de os homens terem sido soltos a deixa apavorada. “Eles sabem onde moro, porque já tinham me seguido até em casa uma outra vez. Estou assustada, acho que eles podem querer vingança.”
O que diz a corte napolitana
A Justiça decidiu que os três homens acusados de estuprar a mulher poderão aguardar o julgamento em liberdade.
A BBC News obteve uma cópia da decisão de 24 páginas do tribunal. O documento detalha o histórico médico da mulher, que enfrenta distúrbios alimentares e depressão. Descreve também que ela teria supostamente sido abusada pelo próprio pai.
“A combinação das condições da vítima nos leva a julgar que ela é indigna de confiança – e, portanto, não se pode confiar apenas na sua versão dos acontecimentos”, diz um trecho da sentença.
O documento diz ainda que a mulher tem uma “personalidade histriônica”, em referência ao transtorno de personalidade caracterizado por um comportamento excessivamente emotivo, dramático e necessidade de chamar atenção para si mesma.
Os advogados argumentam que o prontuário médico da mulher não pode ser usado para dizer que ela inventa coisas.
O tribunal também diz que imagens do suposto ataque feitas por câmeras de segurança não mostram nenhum sinal de resistência ou trauma depois do encontro da mulher com os três homens.
Na Itália, o argumento “ela não resistiu, ela não cambaleou depois, portanto, ela queria” tem, muitas vezes, valor nos julgamentos.
Há, contudo, uma juíza italiana que se revoltou contra essa lógica.
“Se uma mulher não se revolta, significa que a mulher a quer”, exemplifica a juíza Paola di Nicola, que escreveu um livro sobre preconceito de gênero no sistema judicial italiano. “Isso é inaceitável. Muitas vezes termina com a absolvição dos homens.”
O caso do estupro ganhou manchetes na Itália, que se dividiu entre os que acham que a mulher foi vítima e os que acham que ela está dramatizando o que aconteceu no elevador da estação de trem.
“Ela foi promíscua e tem uma tendência de mentir”, opinou uma publicação. A opinião pública também começou a duvidar da história da mulher.
É difícil não comparar o caso da italiana com um episódio recente, que aconteceu na Espanha. Em 2018, mulheres foram às ruas protestar depois que a corte decidiu aplicar punições leves a um grupo de homens acusados de estuprar uma mulher – na Espanha, esse episódio ficou conhecido como o “caso da matilha de lobos”.
Na Itália, assim como na Espanha, não há uma definição clara do que é consentimento quando se trata de estupro. O uso da força, ameaça ou abuso de autoridade tem de ser provado para que um caso seja considerado violência sexual sob a lei italiana.
Assim, é mais fácil para uma vítima ter credibilidade quando os resultados físicos de uma agressão são visíveis.
Feridas no rosto e na alma
Em 2013, por exemplo, o ex-parceiro de Lucia Annibali planejou um ataque com ácido contra ela, que deixou o rosto da mulher gravemente desfigurado.
Ele está na prisão. Ela se elegeu para o Parlamento em 2018.
Lucia Annibali se sente com sorte por ter sobrevivido. Mas as sequelas, para ela, representam muito.
“Em parte, eu morri um pouco. Um ataque com ácido tira uma parte de você. Seu rosto, sua aparência some. Então, parte de mim morreu quando o ataque aconteceu”, disse.
Quando questionada se o que precisa mudar é a lei ou a cultura na Itália, Annibali respondeu: “Ambos”.
“Uma cultura apropriada pode ajudar a construir a lei. Os instrumentos estão lá e o que nos falta é o uso adequado desses instrumentos”, disse.
As cicatrizes de Lucia Annibali são visíveis. Já as marcas de relações sexuais forçadas nem sempre são tão fáceis de ver.
A jovem do caso de Nápoles respondeu a uma última pergunta do repórter da BBC, que quis saber o que ela imagina para a vida no futuro.
A mulher quer tentar ajudar outras mulheres. “Eu gostaria de lançar uma associação que proteja as mulheres em risco.”
O advogado da jovem de 24 anos se aproximou gentilmente. Achava que ela pudesse estar exausta demais para continuar falando. Os dois foram embora, para se preparar para o julgamento.
Fonte: UOL
Créditos: UOL