Após tomar o poder no último domingo no Afeganistão, o grupo extremista Talibã chegou a esboçar tentativas de se mostrar mais moderado do que na última vez que governou o país, entre 1996 e 2001, antes da intervenção dos EUA. A despeito disso, nesta quinta (19), o comandante Waheedullah Hashimi declarou que não haverá a democracia e sim, a Sharia.
No imaginário ocidental, a Sharia é descrita como uma tradução literal da lei islâmica tal como está escrita no Alcorão, o livro sagrado da religião muçulmana, para a vida cotidiana. Foi usada, por exemplo, para justificar a proibição para meninas e mulheres estudarem ou trabalharem no passado.
Em alguns países que dizem seguir a Sharia, há punições pesadas para violações como o adultério (muitas vezes feitas com chibatadas em público) e roubo (em que a mão ou dedos do ladrão são amputados). Essa definição, no entanto, não está correta, de acordo com especialistas.
Política com preceitos religiosos
Segundo Atilla Kush, doutorando em Ciências da Religião pela PUC-SP e membro do Centro de Estudos das Religiões Alternativas e de Origem Oriental no Brasil (CERAL), a própria noção de Sharia (que em árabe antigo significava “caminho até a água”, fundamental para a vida tribal no deserto) tal como é utilizada tanto pelo Talibã quanto outros regimes e grupos fundamentalistas não aparece dessa forma no Alcorão.
“Na verdade, a sharia é usada no livro como um sinônimo de religião e não como uma lei. Esse conceito aparece 5 vezes no Alcorão em diferentes formatos, devido às questões linguísticas, e todas as vezes que esse termo é usado é no sentido de religião, em questões individuais que envolvem o muçulmano. São condutas que todo muçulmano pode viver em sua vida, não recomendações para políticas de governo”, explica Kush.
O que o Talibã faz, segundo o professor, é se utilizar dos conceitos religiosos para justificar condutas e aglutinar apoio entre segmentos de sociedades que vivem no islamismo. Ao longo do tempo, o que nasce como princípios religiosos acaba definindo a prática política do grupo.
“É algo que eles usam para reunir o máximo de gente possível, isso é uma tendência de todo movimento fundamentalista, empregar os símbolos religiosos para unificar o povo. A questão do Talibã e grupos semelhantes é o uso desses conceitos que a gente chama de islamismo, que é diferente do próprio Islam. Eles são um movimento político, motivado pelos princípios religiosos e que, no decorrer do tempo, se torna uma ideologia”, analisa.
Um exemplo disso está no próprio nascimento da religião islâmica, no século 7, na cidade árabe de Meca. Em seus primórdios, ela trazia e defendia direitos para as mulheres, que até então eram desconhecidos na região e em várias partes do mundo, tais como o direito aos estudos, a receber heranças, até mesmo de frequentar as mesquitas.
“A própria esposa de Muhammad (o profeta Maomé) era patroa dele, uma mulher 15 anos mais velha. O Islá responsabiliza mais o homem que a mulher no casamento, por exemplo. O problema é que depois do falecimento do profeta, os muçulmanos se expandiram e tiveram contato com sociedades muito mais patriarcais, que acabaram assimilando a religião. Nesses locais, a cultura acabou prevalecendo sobre os preceitos religiosos”, explica Kush.
Outro exemplo citado pelo professor é que a universidade al Quaraouiyine, a mais antiga do mundo, fundada em 859 na cidade de Fez, no Marrocos, foi criada por mulheres. Fatima al-Fihri e a irmã, Mariam, usaram uma fortuna herdada do pai, um importante comerciante, para criar uma mesquita e uma madraça (uma casa para estudos religiosos).
“Os direitos delas foram retirados em outras sociedades no decorrer do tempo. Então o que vemos hoje entre os grupos fundamentalistas é isso, esses grupos surgem na maioria das vezes em locais machistas e com sociedades patriarcais. Mesmo na Arábia Saudita, que é o berço do islamismo, elas não tiveram quase direitos”, ressalta.
De acordo com Kush, a maior parte do mundo muçulmano emprega os princípios religiosos de outra forma: “Na Indonésia (país com a maior população islâmica do mundo, cerca de 200 milhões de pessoas), na Malásia, no Egito e na Turquia, por exemplo, a situação é oposta, a mulher tem sua liberdade e seus direitos garantidos. A diferença é regional e cultural, mas também varia a visão sobre a própria religião.”
Fonte: R7
Créditos: R7