É muito melhor para o mundo que dois países detentores da bomba atômica, ainda que com poderes incomparáveis, sentem para conversar do que fiquem trocando ofensas e ameaças ora juvenis, ora terrivelmente perigosas.
Isso dito, o teatro ocorrido em Singapura entre os dois líderes traz um indisfarçável gosto de inconsistência.
Os termos deliberadamente vagos sobre as duas moedas de troca na mesa, a chamada desnuclearização da península e as garantias americanas ao regime aberrante de Kim, deixam mais espaço para dúvidas do que para esperanças.
Não menos porque esse filme já foi visto em negociações anteriores, ainda que sem o peso institucional da presença de um presidente americano.
Considerando o histórico americano e mesmo as premissas da democracia como a alternância de poder, o que de fato irá garantir que os EUA nunca tentarão derrubar a ditadura comunista e dinástica norte-coreana?
Apenas uma cláusula ainda não revelada que certamente foi acertada com a China, protetora de Pyongyang e interessada maior no desenho do poder no Pacífico ocidental.
Ainda assim, Kim vai mesmo se desfazer da única garantia real de sobrevivência, a bomba e os mísseis para lançá-la o mais longe possível? Pode ser, se a cláusula chinesa o tiver convencido.
No mais, voltemos à foto do aperto de mão. Atrás dos dois líderes, enfileiradas de forma marcial, bandeiras americanas e norte-coreanas. Não há prova maior da vitória estratégica de Kim na confusa negociação sobre o encontro com Trump: agora ele é um igual ao seu maior rival, teve sua ditadura legitimada pelo antigo “líder do mundo livre”.
Obviamente isso é só no campo simbólico, sem entrar nos detalhes práticos que demorarão meses, talvez anos para serem acertados. Nesse campo, Trump tenta reverter sem muito sucesso uma goleada auto-infligida.
A foto dele sorridente e trocando juras de amor com Kim vem logo depois do histórico registro do americano sendo confrontado pelos antigos aliados ocidentais, com o olhar de desprezo e incredulidade da alemã Angela Merkel liderando o comboio dos outros líderes do G-7.
Diga-me com quem andas, lembra o ditado. Trump se move erraticamente, buscando uma manchete em tempo real para anular a anterior, sem preocupação específica com coerência ou história.
Alguém pode dizer que ele quer encarnar Richard Nixon, um duro republicano que se abriu à China comunista nos anos 1970, mas a importância do feudo de Kim é irrisória em termos comparativos.
Outros apologistas dirão que isso é tática de homem de negócios, a história de bater no peito do adversário antes de chamá-lo para dançar. Pode ser, ainda que seja estranho ver os dois homens sorridentes em Singapura e lembrar os termos pelos quais um se referiu ao outro ao longo de 2017.
Política é hipocrisia, contudo, então se a resultante for positiva, menos mal o preço pago. Mas se a fragilidade aparente por trás da potente fotografia do encontro se comprovar, o preço talvez terá sido alto demais para os EUA e toda a noção de Ocidente do pós-guerra.
Xi Jinping e Vladimir Putin devem estar tomando champanhe em algum lugar.
Fonte: Folha de S. Paulo
Créditos: Folha de S. Paulo