A palavra revolução — como qualquer outro termo do nosso vocabulário político — pode ser usada em sentido genérico, sem levar em conta a origem da palavra nem o momento temporal em que o termo foi aplicado pela primeira vez a um fenômeno político concreto. O pressuposto básico de semelhante uso é que, independentemente de quando e por que o termo apareceu, o fenômeno a que alude tem a mesma idade da memória humana. A tentação de usar a palavra em sentido genérico é particularmente forte quando falamos de “guerras e revoluções” ao mesmo tempo, porque de fato as guerras são tão antigas quanto a história da humanidade desde que temos testemunho dela.
O verdadeiro significado do termo revolução, antes dos acontecimentos do final do século XVIII, se manifesta talvez mais claramente na inscrição presente no Grande Selo da Inglaterra de 1651, segundo a qual a primeira transformação da monarquia em república significou: “Freedom by God’s blessing restored” [liberdade restaurada pela bênção de Deus]”.
O fato de a palavra revolução significar originalmente restauração é mais do que mera curiosidade semântica. Nem sequer as revoluções do século XVIII podem ser entendidas sem indicar que estouraram acima de tudo com a restauração como objetivo e que o conteúdo dessa restauração era a liberdade. Nos Estados Unidos, nas palavras de John Adams, os homens que participaram da revolução tinham sido “chamados [a ela] sem haver previsto e não tiveram outra escolha a não ser fazê-la sem ter uma inclinação prévia”; a mesma coisa se verifica em relação à França, onde, nas palavras de Tocqueville, “teria cabimento acreditar que o objetivo da iminente revolução seria a restauração do Antigo Regime, não sua derrocada”. E foi no curso das duas revoluções, quando seus atores adquiriam consciência de que tinham embarcado em uma empresa completamente nova e não no regresso a uma situação anterior, que a palavra revolução adquiriu, portanto, o seu novo significado. Foi Thomas Paine, nem mais nem menos, que ainda fiel ao espírito anterior propôs com toda a seriedade chamar de “contrarrevoluções” tanto a Revolução Norte-americana quanto a Francesa. Eu queria liberar esses acontecimentos tão extraordinários da suspeita de que com eles se tinha dado vida a começos completamente novos, assim como da rejeição motivada pela violência com a que tais acontecimentos se tornaram irremediavelmente ligados.
É muito provável que tenhamos esquecido a expressão de um horror quase instintivo na consciência daqueles primeiros revolucionários diante de algo completamente novo. Isso é possível em parte porque estamos perfeitamente familiarizados com o entusiasmo dos cientistas e filósofos da Idade Moderna por “coisas que nunca haviam sido vistas antes e ideias que nunca tinham ocorrido a ninguém até a data”.
É também porque nada do que aconteceu no curso dessas revoluções é tão notável e tão surpreendente quanto o enfático destaque feito em relação à novidade, repetida várias vezes por atores e espectadores ao mesmo tempo, insistindo que nunca se havia produzido até então nada comparável por seu significado e grandeza. A questão crucial e complexa é que o enorme pathos da nova era, o Novus Ordo Seclorum, que ainda aparece escrito nas notas de um dólar, se impôs somente quando os atores da revolução, em boa parte contra sua vontade, chegaram a um ponto de não retorno.
Assim, o que aconteceu no fim do século XVIII foi, na verdade, uma tentativa de restauração e recuperação de antigos direitos e privilégios que acabou justamente no contrário: no desenvolvimento progressivo e na abertura de um futuro que desafiava qualquer tentativa posterior de agir ou pensar em termos de movimento circular ou rotativo. E enquanto a palavra revolução foi transformada radicalmente no processo revolucionário, algo semelhante aconteceu, mas infinitamente mais complexo, com a palavra liberdade. Embora com ela não se pretendesse indicar nada mais do que a liberdade “restaurada pela bênção de Deus”, continuaria se referindo aos direitos e liberdades que hoje associamos com o governo constitucional, o que é adequadamente chamado de direitos civis. Entre estes não se incluía o direito político de participar nos assuntos públicos. Nenhum dos outros direitos, incluindo o direito de ser representado para fins tributários, foi resultado da revolução, nem na teoria nem na prática. O revolucionário não era a proclamação de “vida, liberdade e propriedade”, mas a ideia de que eram direitos inalienáveis de todos os seres humanos, independentemente do local onde vivessem ou do tipo de governo que tivessem. E mesmo nessa nova e revolucionária extensão para toda a humanidade, a liberdade não significava mais que a autonomia diante de todo impedimento injustificável, isto é, algo essencialmente negativo. Os direitos civis são resultado da libertação, mas não constituem em absoluto a autêntica substância da liberdade, cuja essência é a admissão na esfera pública e a participação nos assuntos públicos.
Nenhuma revolução, independentemente da amplitude com que abre suas portas às massas e aos oprimidos, nunca foi iniciada por eles
Nenhuma revolução, independentemente da amplitude com que abre suas portas às massas e aos oprimidos — les malheureux, les misérables ou les damnés de la terre, como os chamamos em virtude da retórica grandiloquente da Revolução Francesa — nunca foi iniciada por eles. E nenhuma revolução jamais foi obra de conspirações, de sociedades secretas ou de partidos abertamente revolucionários. De modo geral, nenhuma revolução é possível onde a autoridade do Estado está intacta, o que, nas condições atuais, significa ali onde se pode confiar que as Forças Armadas obedecerão às autoridades civis. As revoluções não são respostas necessárias, mas respostas possíveis à delegação de poderes de um regime; não a causa, mas a consequência do desmoronamento da autoridade política. Em todos os lugares em que se permitiu o desenvolvimento descontrolado desses processos desintegradores, geralmente durante um período prolongado de tempo, podem acontecer revoluções, desde que exista um número suficiente de pessoas preparadas para o colapso do regime existente e para a tomada do poder.
Hannah Arendt (1906-1975) é uma das pensadoras mais influentes do século XX. Este texto é parte do ensaio La Libertad de Ser Libres, publicado recentemente na Espanha pela editora pela Taurus.
Fonte: El país
Créditos: El país