Perseguições

Desinformação, corrupção e violência: governo do Peru aperta o cerco contra o jornalismo

É cada vez maior o número de políticos que usam seu discurso para estigmatizar os jornalistas e a imprensa.

Foto: ANGELA PONCE/THE NEW YORK TIMES
Foto: ANGELA PONCE/THE NEW YORK TIMES

Um dos jornalistas mais prestigiados da América Latina, cujo trabalho derrubou presidentes e levou a investigações criminais sobre as irregularidades do governo, estava se recuperando de um ciclo agressivo de quimioterapia quando recebeu outra má notícia: um promotor peruano o estava acusando oficialmente de receber propina.

Gustavo Gorriti, de 76 anos, editor-chefe de um órgão de imprensa investigativo no Peru, sabe muito bem o que é enfrentar problemas: nos anos 90, foi sequestrado por membros de um esquadrão da morte secreto que uma averiguação posterior revelou ser encabeçada por Alberto Fujimori – sendo que o jornalista passara anos denunciando casos de corrupção e violações aos direitos humanos perpetrados durante o governo do ex-presidente. Mais recentemente, ajudou a expor um esquema complexo de corrupção conhecido como Operação Lava Jato, que levou à prisão e à renúncia de autoridades em toda a América Latina. Agora, corre o risco de ser preso.

A Procuradoria-Geral do Peru o denunciou por fazer reportagens positivas em troca de informações oficiais privilegiadas. Gorriti nega as acusações, que, segundo colegas e defensores da liberdade de expressão, têm motivação política e a intenção de puni-lo por trabalhos anteriores.

De acordo com grupos de defesa da liberdade de imprensa, o caso é apenas mais um entre vários ataques à mídia independente peruana, e parte de uma onda mais ampla de iniciativas de censura aos profissionais da área em um número de países das Américas Central e do Sul que só faz crescer. “É cada vez maior o número de políticos que usam seu discurso para estigmatizar os jornalistas e a imprensa. Organizam campanhas de desinformação, promovem investigações abusivas e investem no proselitismo para alimentar abertamente a desconfiança e estimular a polarização”, disse a Repórteres sem Fronteiras.

Segundo os analistas, a perseguição de jornalistas reflete um retrocesso democrático mais amplo. Para se manter no poder, a coalizão conservadora simplesmente driblou os procedimentos oficiais, destacando aliados para os tribunais, a justiça eleitoral e a Procuradoria-Geral. Além disso, seus representantes aprovaram leis que dificultam a investigação, o julgamento e a punição em casos de corrupção, e mudaram a Constituição para aumentar o poder do Legislativo – que usam com uma frequência cada vez maior para perseguir os jornalistas.

É o caso de Paola Ugaz, que escancarou anos de abuso sexual infantil e corrupção em uma organização religiosa influente e enfrenta vários processos, inclusive de lavagem de dinheiro. Outros jornalistas foram condenados por difamação pela investigação de políticos, entidades religiosas e cartolas do esporte.

Os grupos internacionais de imprensa concordam que o Peru se tornou um ambiente altamente hostil para a profissão – tanto que o país despencou no índice de liberdade de imprensa mantido pela Repórteres sem Fronteiras, caindo da 77ª para a 125ª posição – a maior queda verificada na América Latina.

No estudo feito em 2023 pela Freedom House, organização de direitos humanos que avalia o nível de liberdade internacional, o Peru, até então considerado “livre”, foi rebaixado para “parcialmente livre”. Segundo o grupo, isso se deu por causa da “fragilização da independência judiciária, dos escândalos de corrupção que comprometeram a confiança do público no governo e das polarizações ferrenhas dentro do círculo governamental, gerando desestabilização política”.

Atualmente, Gorriti é o editor-chefe do IDL-Reporteros, site investigativo peruano conhecido por revelar casos de irregularidades envolvendo figuras poderosas, mas começou a carreira documentando a ascensão do Sendero Luminoso, grupo rebelde violento criado nos anos 80, e expôs a ligação com o narcotráfico de integrantes do alto escalão do setor de inteligência do governo Fujimori – que, segundo as investigações, mais tarde ordenou seu sequestro. Esse crime – além de outros – foi fundamental para a condenação do ex-presidente, em 2009, a 25 anos de prisão.

Gorriti se mudou para o Panamá, onde revelou a relação entre membros do governo e traficantes para um jornal local. Sua investigação envolveu também os quatro ex-líderes do Peru que governaram entre 2001 e 2020 e cometeram uma forma ou outra de irregularidade. Um deles, Alan García, disparou contra a própria cabeça quando as autoridades chegaram à sua casa para prendê-lo.

Em entrevista, Gorriti afirmou que, apesar da perseguição que sofre há décadas, sua denúncia sobre as propinas ganhou destaque. “Na época em que Fujimori estava no poder, o perigo físico era iminente; hoje, o governo manipula o sistema judiciário inteiro, de modo que a situação ficou muito mais intensa do que antes.”

Para Artur Romeu, diretor da agência latino-americana da Repórteres sem Fronteiras, é “inacreditável que tenham tomado uma atitude como essa contra um dos jornalistas mais renomados do país”.

Depois de anos de autoritarismo sob Fujimori, as eleições de 2000 marcaram o início de um período democrático no Peru, além do crescimento econômico e de uma liberdade de expressão incipiente; nos últimos anos, porém, a economia começou a tropeçar e o nível de confiança no governo despencou. E os tribunais vêm sendo cada vez mais usados como recurso para silenciar as críticas.

Não só Gorriti como outros também enfrentam o assédio de grupos de direita, que organizam manifestações na frente do local onde trabalham e jogam fezes onde moram. Os canais de TV direitistas também investem na disseminação de desinformação, já tendo acusado Gorriti de ser mandante de vários crimes. Como parte da investigação atual, os promotores estão exigindo a entrega dos telefones que usa para trabalho e que revele suas fontes. Ele se recusou a obedecer.

Para Jonathan Castro, repórter político e editor de um podcast, a ação contra Gorriti dificulta ainda mais o trabalho dos outros profissionais: “Muitas fontes desistiram de fornecer informações porque estão com medo.”

O governo já abriu processos de difamação contra jornalistas antes, mas vem recorrendo cada vez mais a acusações criminais mais sérias. Em entrevista, Ugaz revelou receber ameaças de morte nas redes sociais e ser vítima de abuso verbal nas ruas da capital, Lima, como consequência das campanhas de desinformação contra sua pessoa – inclusive de que teria, ao lado de familiares de Mario Vargas Llosa, escritor e ganhador do Prêmio Nobel, contrabandeado urânio e plutônio. “Não há critério nenhum. É de imaginar que ninguém acreditaria em uma coisa tão absurda.”

R7