“É difícil expressar em palavras como é o Natal juntos como uma família. Estamos separados há tanto tempo. Acho que é apenas ser feliz. Por muito tempo, não fomos felizes e podemos ser felizes novamente.”
David Challen, 32, está ansioso para passar seu primeiro Natal com sua mãe, Sally, em quase uma década.
Ela passou nove anos na prisão por matar o pai dele, Richard, em 2010.
Sally foi inicialmente considerada culpada de assassinato, mas apelou com sucesso contra sua condenação.
Ela foi libertada da prisão em abril deste ano, e a acusação foi depois reduzida a homicídio culposo (sem intenção de matar).
Para David, ter a mãe de volta em sua vida foi “incrível” e o Natal será um “momento especial” para a família.
“Não sei dizer o que isso significa. Não esperávamos estar nessa situação por mais dez anos”, disse ele ao programa Newsbeat, da BBC.
“Obviamente, é difícil deixá-la ser nossa mãe novamente. É uma dinâmica diferente, mas estamos felizes de ter o Natal juntos.”
Controle coercitivo
Justiça identificou que o marido de Sally, Richard, cometia abusos domésticos contra esposa — Foto: Arquivo pessoal/via BBC
Sally sofreu anos de abuso emocional do marido.
Ela foi vítima de controle coercitivo, um padrão de comportamento de um agressor para prejudicar, punir ou assustar sua vítima que em 2015 se tornou crime na Inglaterra e no País de Gales.
Controle coercitivo é uma variação da violência doméstica, mas que não inclui necessariamente ataques físicos.
O resultado é o isolamento da vítima de sua rede de apoio familiar e de amigos, ficando totalmente dependente de alguém que lhe dirige ataques, ameaças, humilhações e intimidação. Ser vítima de controle coercitivo é parecido com se tornar refém de sequestradores, dizem especialistas no tema. É uma espécie de controle psicológico contínuo.
A história de Sally é contada em um documentário da BBC, O Caso de Sally Challen, no qual David aparece visitando o túmulo de seu pai e parece abalado ao falar sobre o que aconteceu com a família.
“É difícil lidar com o fato de que minha mãe matou meu pai.”
Sally conheceu Richard quando ela tinha 15 anos — Foto: Arquivo pessoal/via BBC
Em um certo momento, ele relembra que precisou limpar o sangue de seu pai do chão da cozinha depois que a polícia conclui sua investigação.
“É obviamente uma tragédia pela qual nunca desejamos passar. E não queremos justificar suas atitudes, mas pelo menos as entendemos”.
Para ele, não dá para escapar do fato de que ela é sua mãe e sempre lhe deu todo o apoio necessário e que sempre amará seu pai ainda que ele não mereça.
David afirma ainda amar o pai, mesmo que provavelmente ele não mereça — Foto: Arquivo pessoal/via BBC
“Eu tenho noção do caminho que ele escolheu seguir em sua vida e acho que ele sabia do abuso que estava cometendo.
David afirma não ter conversado direito com sua mãe sobre o que aconteceu.
“Uma vez eu falei: Por que você precisou matá-lo? Mas não foi uma decisão, foi uma perda de controle. Eu vivi com ela até o momento em que aquilo aconteceu e sentia que havia uma bola de neve como pano de fundo.”
Ele afirmou não saber da extensão dos abusos relatados por sua mãe. Segundo ela, o marido a ofendia, fazia comentários rudes sobre seu peso e sua roupa, a obrigou a parar de falar com outras pessoas e a estuprou e humilhou diversas vezes.
235 condenações por controle coercitivo
Dados de dezembro passado apontam que a maioria dos casos envolvendo acusações de controle coercitivo foram arquivados sem indiciamento.
Segundo levantamento feito pela BBC com 33 órgãos policiais na Inglaterra e no País de Gales, de janeiro de 2016 a julho de 2018 foram realizadas 7.034 de acusados deste crime.
Mas apenas 1.157 casos foram concluídos com o indiciamento do acusado.
“O controle coercitivo não é levado suficientemente a sério no sistema de Justiça penal”, opina David. Para ele, há bastante desconhecimento das autoridades.
David liderou campanha para livrar sua mãe da prisão — Foto: Arquivo pessoal/via BBC
“Temos essa lei há quatro anos e o sistema judicial ainda não reconhece vítimas de abuso porque elas não têm ossos quebrados ou rostos feridos.”
O governo britânico afirmou à BBC no ano passado que 235 pessoas foram condenadas desde que a lei entrou em vigor.
No Brasil, um levantamento do Datafolha feito em fevereiro de 2019 sob encomenda da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) buscou avaliar o impacto da violência contra as mulheres no Brasil.
Segundo esse estudo, nos 12 meses anteriores, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. Dentro de casa, a situação não foi necessariamente melhor. Entre os casos de violência, 42% ocorreram no ambiente doméstico.
Grande parte das mulheres que sofreram violência dizem que o agressor era alguém conhecido (76,4%).
Caso exemplar
Para David, sistema judicial ainda não entendeu que abuso doméstico só existe quando há hematomas — Foto: Arquivo pessoal/via BBC
David espera que o caso de sua mãe ajude outras mulheres que sofreram abusos de parceiros.
“O caso dela ajudou a moldar como se entende o abuso doméstico neste país”, afirmou.
Na semana passada, Farieissia Martin, 26, teve uma vitória na Justiça em sua apelação contra uma condenação por homicídio.
Ela foi presa em 2015 por ter matado a facadas seu ex-parceiro Kyle Farrell, 21, durante uma briga na casa deles em Liverpool.
O Tribunal de Apelações identificou que ela foi vítima de abuso doméstico com violência física, insultos e a proibição de manter laços com familiares e amigos.
Para David, “nós estamos apenas na ponta do iceberg de quantas pessoas foram afetadas por esse tipo de abuso”.
Fonte: G1
Créditos: G1