Maria Paula Figueiredo tinha acabado de voltar para casa, em Weston, na Flórida (Estados Unidos), quando começou a sentir dor de cabeça. Ela achou que fosse só mais uma crise de sinusite.
Mas, três dias depois, a estudante de 21 anos recebeu uma mensagem de uma amiga pedindo que ela fizesse o teste para o novo coronavírus.
As duas tinham passado o final o final de semana juntas em uma casa em Orlando com outras pessoas para comemorar um aniversário, e a amiga de Maria Paula soube depois que estava infectada.
Todos os 15 amigos que estavam no encontro se contaminaram, e Maria Paula acredita que passou o coronavírus para sua cunhada, com quem mora, antes de saber que estava infectada.
“Muitas pessoas que eu conheço já pegaram. Contando as que estavam na reunião em Orlando, são mais de 40. Você vai conversando e descobre que o amigo do amigo também pegou”, diz a estudante.
O caso ajuda a entender por que a pandemia saiu de controle no último mês na Flórida, que é o principal destino de imigrantes brasileiros nos Estados Unidos.
Recordes sucessivos de novos casos
O Estado confirmou seus primeiros casos no início de março e entrou em lockdown no começo de abril, quando tinha em torno de 8 mil infecções confirmadas.
A Flórida parecia ter sido de certa forma poupada pela pandemia, especialmente em comparação com Estados do norte do país, como Nova York, Nova Jersey, Illinois e Massachusetts, onde a situação era mais grave.
Ao longo de abril, o Estado teve no máximo 1.413 novos casos por dia, muito menos dos que o recorde de 11.571 novos casos de Nova York no mesmo mês.
A epidemia local se manteve mais ou menos nesse patamar em maio, mas, em junho, o número de novos casos começou a disparar.
A Flórida bateu recorde atrás de recorde desde então, e o número de novos casos diários atingiu seu nível mais alto na quinta-feira (2). Foram 10.109 infecções em 24 horas.
O total acumulado desde o início da pandemia triplicou no último mês, para 169,1 mil, e a Flórida é hoje o quinto Estado americano com mais casos de Covid-19. Mas o que aconteceu?
Bares, praias e restaurantes cheios
Um mês antes dessa explosão de casos, o governo estadual deu início a um relaxamento progressivo das medidas de isolamento social, que culminou na reabertura de praias, hotéis, bares e restaurantes no início de junho.
Mary Jo Trepka, chefe do departamento de epidemiologia da Escola de Saúde Pública e Assistência Social da Universidade Internacional da Flórida, diz que isso foi um dos fatores que levaram ao aumento.
Muitas pessoas no Estado pensaram que, com a reabertura, o pior já havia passado. Mas, na verdade, o vírus ainda estava circulando amplamente.
“Muita gente, principalmente os jovens, voltou a socializar de uma vez. A reabertura aconteceu justamente na época das festas de formatura e das férias. Os restaurantes, praias e bares ficaram cheios de novo”, diz Trepka.
Esther Pereira vive há 25 anos em Fort Lauderdale, no sul da Flórida, a região mais afetada do Estado. Seis amigos dela já tiveram covid-19, três deles só na última semana.
Ela diz que, mesmo antes da reabertura, havia lugares, como restaurantes e salões de beleza, que estavam funcionando clandestinamente.
“E, quando reabriu, as pessoas saíram pra rua em massa e não tomaram os cuidados recomendados pelo governo, por isso, as taxas saíram de controle”, diz Esther.
A própria Maria Paula acha que se descuidou um pouco, mesmo que as reuniões com até 50 pessoas já estivessem liberadas no Estado.
“Eu não usei máscara em nenhum momento nem mantive um distanciamento dos meus amigos quando estava com eles.”
‘Ditadores comunistas’
Mas nem sempre quem deixa de se proteger faz isso sem querer.
No fim de junho, quando uma audiência pública do condado de Palm Beach avaliava se o uso de máscaras deveria ser obrigatório em público, vários moradores foram ao microfone protestar contra a medida.
As autoridades locais foram acusadas de serem “ditadores comunistas” que seguem as “leis do diabo” e violam a “liberdade de escolha” dos cidadãos americanos.
“Vocês serão presos por seus crimes contra a humanidade. Cada um de vocês será punido por Deus. Vocês não escaparão de Deus, nem com máscara ou distanciamento social”, disse uma mulher.
Para ela, as novas regras são parte de uma conspiração que une a telefonia 5G, o empresário Bill Gates, a ex-primeira-dama Hillary Clinton e grupos pedófilos.
“O Brasil tem muitos negacionistas da pandemia, mas os Estados Unidos são a fonte. É daqui que saem muitas das teorias da conspiração”, diz o virologista Anderson Brito, do departamento de epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale, nos Estados Unidos.
O pesquisador avalia que a polarização política em torno das medidas de combate à pandemia se torou um desafio ao controle do coronavírus nos Estados Unidos.
“Os apoiadores do [presidente republicano] Donald Trump são reticentes quanto a seguir as regras, assim como ele próprio, que não usa máscara até hoje. Eles acham que isso é coisa de esquerdista, de democratas e dizem que fere sua liberdade individual e direitos constitucionais”, diz Brito.
Trump venceu as últimas eleições na Flórida com 49,02%, o que garantiu a eles os votos dos 29 delegados eleitorais do Estado, que costuma ser decisivo na corrida pela presidência dos Estados Unidos.
No ano passado, o republicano Ron DeSantis foi eleito governador da Flórida com o apoio de metade dos eleitores. E os dois senadores atuais do Estado, Marco Rubio e Rick Scott, também são do partido de Donald Trump.
Menos turismo, menos trabalho
“Um amigo meu fez um churrasco para 50 pessoas durante a quarentena porque acha que o vírus não existe”, diz o empresário carioca Marco Alevato, que vive há 24 anos na Flórida.
Ele calcula que os negacionistas da pandemia representam “uns 15% a 20% das pessoas”.
“Elas não acreditam que seja um vírus natural. Dizem que tudo é parte de uma campanha de controle social que envolve as antenas de 5G ou que é um plano da China para dominar o mundo”, afirma Marco, que diz ter pegado Covid-19 no início de março, assim como sua mulher e o filho.
Ele é dono de uma editora em Orlando e diretor da Câmara de Comércio Brasileira Americana da Flórida Central, uma organização local de promoção de negócios entre o Brasil e os Estados Unidos.
Marco afirma que os brasileiros que vivem na Flórida têm sido especialmente afetados economicamente pelo coronavírus porque muitos trabalham em empresas ou têm negócios ligadas ao turismo, atividade que caiu muito desde o início da pandemia.
De acordo o Itamaraty, até 2018, de acordo com as estimativas mais recentes, aproximadamente 1,64 milhão de brasileiros moravam nos Estados Unidos, dos quais 370 mil registrados sob a jurisdição do Consulado-Geral em Miami, que abrange a Flórida, Porto Rico e Ilhas Virgens norte-americanas.
“Esse montante corresponde à mais numerosa comunidade sob jurisdição de um mesmo consulado brasileiro nos Estados Unidos”, disse o Itamaraty à BBC News Brasil.
Marco estima que apenas um quarto dos brasileiros que vivem na Flórida têm cidadania, green card ou um visto para poder trabalhar ou empreender nos Estados Unidos.
Metade não poderia trabalhar, mas, segundo o empresário, fazem isso mesmo assim — e muitas dessas pessoas perderam seus empregos e, agora, para sobreviver, estão aceitando os empregos informais (e salários menores) que antes eram dos brasileiros indocumentados, como é chamado quem está em situação irregular no país.
E os indocumentados? “Esses estão ferrados”, diz Marco. “Tem muita gente indo embora porque não tem emprego, e, sem trabalho, vão passar fome.”
Mais testes, mais casos?
Na última quinta-feira, os Estados Unidos, país com mais casos de Covid-19 do mundo, bateu mais uma vez o recorde diário global de novas infecções, com mais de 55,2 mil diagnósticos — um quinto disso foi na Flórida.
O governador Ron DeSantis chegou a dizer, no meio de junho, que o aumento do número de novos casos era devido ao maior número de testes feitos no Estado.
“Agora temos uma testagem ampla de pessoas assintomáticas. Quando elas voltam ao trabalho, as empresas dizem para elas fazerem o teste. E não temos mais só os grandes centros de testes. Nós expandimos para os drive-thru e os locais que pessoa pode se testar sem agendar. Temos locais de testes em lojas. São milhares e milhares de testes feitos por dia”, disse ele.
Até o início de junho, 1 milhão de testes haviam sido realizados na Flórida. Esse número dobrou no último mês. O total de pessoas testadas corresponde hoje a quase 10% de seus 21 milhões de habitantes.
Mas a epidemiologista Mary Jo Trepka, que monitora junto com colegas da universidade a evolução do surto no sul do Estado, afirma que os dados provam que a teoria do governador está errada.
Ela diz que, mesmo que o total de testes esteja crescendo, a proporção de resultados positivos está aumentando mais rápido — eram 5% há um mês e são 15% agora.
“Além disso, o número de pessoas que estão chegando às emergências, de hospitalizações, de internações nas UTIs e de pacientes intubados estão aumentando, e nada disso poderia ter sido resultado de mais testes”, diz Trepka.
Um alívio — e um alerta
O próprio DeSantis reconheceu seu equívoco há alguns dias, mas afirmou nesta semana que não vai interromper a reabertura da economia, ainda que tenha sido obrigado a ceder quanto aos bares, que foram fechados novamente na semana passada para conter a propagação do vírus.
“Não vamos voltar atrás. Não são as pessoas que frequentam um negócio que impulsionam (a pandemia). Acho que quando você vê olha para os mais jovens, vê que muito disso são apenas as interações sociais, então, isso é natural”, disse o governador.
Talvez o único ponto de alívio para a Flórida em meio a tudo isso seja que o número de novas mortes no Estado não tenha acompanhado a explosão de novos casos — ainda.
Com 3.617 óbitos até agora (67 delas nas últimas 24 horas), a Flórida, o terceiro Estado mais populoso do país, tem apenas a 26ª taxa de incidência de mortes a cada 100 mil habitantes entre os 50 Estados americanos.
Isso se deve ao fato de que que a maioria das pessoas contaminadas ali têm até 44 anos, dizem os epidemiologistas, e a Covid-19 tende a ser menos grave entre os mais jovens.
Mas eles também alertam que os jovens da Flórida não estão isolados, mas em contato com pessoas mais velhas.
Os epidemiologistas ainda chamam atenção para o fato de que um aumento do número de novos casos ainda pode se refletir sobre as estatísticas de novas mortes, porque, normalmente, isso leva algumas semanas para acontecer.
Por isso, muitos acreditam que a Flórida deveria agir com prudência e ser mais comedida nas suas festas deste sábado, 4 de julho.
O Dia da Independência dos Estados Unidos costuma ser uma das principais celebrações do ano do país, mas, desta vez, a Flórida chega nesta data sem ter muito o que comemorar.
Fonte: G1
Créditos: G1