Um projeto universitário de redistribuição de comida doada pelo varejo quando a data de validade dos produtos está perto de ser atingida conquistou notável sucesso na Irlanda, a tal ponto que o conceito agora está se difundindo no Reino Unido e tem potencial de adoção em todo o planeta.
Aoibheann O’Brien se lembra da primeira caixa de alimentos redistribuída, cinco anos atrás. Ela e sua parceira no projeto, Iseult Ward, a apanharam em uma feirinha orgânica e entregaram a um centro de serviços para a juventude, em Dublin. “O que nós pensamos foi que a sensação era ótima. A caixa continua salsichas artesanais, um delicioso pão de massa fermentada e acho que também leite fresco.”
Aquela entrega foi um teste para o FoodCloud (nuvem de comida, em tradução livre), um projeto universitário que as duas criaram. A ideia se tornou uma startup de tecnologia que conecta empresas nas quais haja alimentos excedentes a organizações assistenciais que precisam de comida.
Passados cinco anos, 8,3 mil toneladas de comida, o equivalente a mais de 18 milhões de refeições, escaparam de ir para o lixo.
Hoje, a FoodCloud emprega 30 pessoas para redistribuir alimentos perecíveis doados por quase duas mil empresas, na Irlanda e Reino Unido.
Na sede da organização em Dublin, o livro de visitas fica sobre uma plataforma feita com um pallet de madeira –um símbolo da opção por utilidade frente ao desperdício. Os escritórios, de um colorido brilhante, foram pintados por presidiários que cumprem suas sentenças em regime semiaberto. Uma equipe de tecnologia trabalha no piso térreo e, no andar de cima, uma equipe de call center atende a telefonemas de supermercados do Reino Unido, onde mais de 1,6 mil unidades da cadeia Tesco e três lojas Waitrose doam comida à organização.
Até o final de 2016, as transações da FoodCloud envolviam pequenos volumes de alimentos recolhidos por organizações assistenciais em supermercados e lojas e redistribuídos a pessoa carentes. Agora, no novo e espaçoso armazém da organização, a escala de sua nova operação, FoodCloud Hubs, fica aparente.
“Há muito desperdício no nível do varejo, mas também há muita comida desperdiçada antes mesmo de chegar ao supermercado, no nível do atacado”, diz O’Brien.
Por isso, o armazém de Dublin, e outros localizados em Cork e Galway, recebem pallets de comida de empresas irlandesas –entre as quais centros de distribuição de supermercados e fabricantes de alimentos– e os entregam a organizações assistenciais.
Em meio à vasta carga recebida há dois pallets de barras nutrientes Nutrigrain, que teriam sido jogadas no lixo, e um pallet de digestivo anaeróbico, que foi descartado porque seu prazo de validade está perto do fim.
Em uma seção de armazenagem refrigerada, patos e perus da linha de Páscoa da rede de supermercados Aldi estão armazenados, o que estende sua validade. A organização avançou muito desde aquela primeira caixa de pão, leite e salsichas.
O’Brien começou a se entusiasmar com a questão da comida e sustentabilidade quando morava em Londres e era trainee do banco JP Morgan. Formada em direito e contabilidade, ela retornou a Dublin para fazer seu mestrado e decidiu se apresentar como voluntária para um pequeno projeto de redistribuição de alimentos na cidade.
O’Brien participou de um evento de empresas sociais –no qual propôs a ideia de um café abastecido por alimentos excedentes– e lá conheceu Iseult Ward, aluna de administração de empresas no Trinity College, que adorou a ideia.
“Percebemos uma brecha no mercado para esses excedentes de alimentos, no nível dos supermercados”, diz O’Brien. “Foi isso que consideramos muito interessante, porque existe excedente e escassez nas mesmas comunidades. Nossa ideia era que seria maravilhoso se pudéssemos aproximar essas duas pontas. Tínhamos todos aqueles múltiplos [os alimentos jogados fora] e logo adiante na mesma rua encontrávamos um cartaz pedindo doações para [a organização assistencial] St. Vincent de Paul.”
Elas rapidamente descobriram as barreiras que o moderno sistema de comércio de alimentos impõe àquela ideia simples de unir escassez e excedentes.
“Um cara estava trabalhando com isso em Chicago, e conversamos com ele, mas quando falamos em criar um modelo mais organizado, com um centro de redistribuição, ele disse que o varejo era muito complicado, porque os volumes eram pequenos e os produtos estariam no fim de sua vida útil. Ele disse que a ideia dava mais trabalho do que seria justificado, em termos de comida. E que colocá-la em prática seria realmente complicado.”
Mas as duas não se deixaram abater.
Em lugar disso, cada barreira se tornou um problema a ser resolvido. Elas prepararam contratos que responsabilizavam as organizações assistenciais pela entrega segura dos alimentos que recebessem em boas condições.
O espírito de compartilhamento que existe no setor de organizações sem fins lucrativos significava que elas podiam dispor de outros recursos. “Aquele cara em Chicago nos autorizou a usar seu app. Pessoas em Londres nos deram contatos”, conta O’Brien.
Em outubro de 2013, elas conseguiram sua primeira grande vitória, quando a cadeia de supermercados Tesco aderiu ao projeto, na Irlanda. “Até então, estávamos nos virando com a ajuda de alguns cafés e padarias”, diz O’Brien.
Mas elas logo passaram de seu primeiro supermercado para um total de 13 lojas, e na metade do ano seguinte estavam recebendo alimentos de todas as lojas Tesco da Irlanda e contrataram os primeiros funcionários para sua organização. Hoje, 274 empresas irlandesas de varejo de comida se conectam com 303 organizações assistenciais por meio da FoodCloud.
Restam muitos desafios, com o crescimento da FoodCloud, especialmente o de manter a operação sustentável em termos financeiros e distribuir os alimentos rapidamente para que sua validade não expire nos armazéns da organização. Mas as reações dos contatos vêm sendo encorajadoras. “O desperdício de comida e a pobreza alimentar precisam ser parte do diálogo sobre sustentabilidade alimentar, e vemos grande potencial de liderança para a Irlanda nisso.”
Elas gostariam de eliminar todo desperdício de alimento. Enquanto isso, tentam garantir que os excedentes de comida cheguem às pessoas que precisam deles.
“Há muita energia no projeto e muita gente que o apoia. Você pode começar alguma coisa, mas precisa do apoio de muita gente para mantê-la em crescimento… As pessoas sentem intuitivamente que o que fazemos é realmente bom”, afirma O’Brien.
Fonte: Folha