A influência dos dois países no futebol mundial é notório, com sete títulos de Copa do Mundo somados. Enquanto o Brasil ostenta cinco troféus, a Argentina levantou a taça por duas vezes – a última em 1986, liderada por Maradona.
Os argentinos lideram o recorde de conquistas da Copa América com o Uruguai, com 15 cada. A seleção brasileira venceu a competição por nove vezes. A Libertadores, principal torneio do continente, tem o país vizinho como o maior vencedor.
São 25 títulos contra 21. Na Sul-Americana, a freguesia é repetida: nove contra cinco. A competitividade entre as duas nações dentro das quatro linhas é fator marcante, incendiando uma história de antagonismo que vem desde o século 19.
Uma rivalidade entre Argentina e Brasil antes mesmo da constituição dos países como Estados Nacionais e de uma identidade cultural própria.
Francisco Doratioto, professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), relaciona o surgimento de tensões com o expansionismo mercantilista de Portugal e Espanha sobre a América. “No período colonial, o expansionismo territorial português colocou em confronto diplomático e militar com a Espanha, especialmente no Rio da Prata”, afirma.
Feliciano de Sá Guimarães, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, explica que a rivalidade entre Brasil e Argentina, antigas colônias de Portugal e Espanha, respectivamente, tem origem na Guerra da Cisplatina (1825-1828), região onde hoje é o Uruguai e terminou sem um vencedor.
Ela ganhou força depois da Guerra do Prata (1845 – 1852), que estabeleceu a hegemonia brasileira na região da Bacia do Rio Prata e gerou estabilidade política e econômica no Império.
“No final do século 19 a Argentina começa a crescer rapidamente do ponto de vista econômico e recebe uma massa muito grande de imigrantes europeus, bem maior que o Brasil. Eles se tornam uma força econômica e militar no final do século 19 e início do século 20, aumentando a influência na América do Sul de uma forma geral. O Brasil só retoma a força mesmo já nos anos 1960 e 1970?”, diz Feliciano.
“Com certeza essa rivalidade repercute no Brasil durante o período do Primeiro Reinado, no qual Dom Pedro I manteve a lógica imperialista portuguesa sobre os territórios do Rio da Prata”, analisa Doratioto. “O governo brasileiro constrói políticas ao longo dos séculos 19 e 20 para contenção da influência argentina no Cone Sul.”
Segundo a Associação de Futebol Argentino (AFA), o primeiro Brasil x Argentina aconteceu em 1908, com os argentinos vencendo o combinado brasileiro por 3 a 2, no Rio. Porém, a Fifa e a CBF consideram que o primeiro jogo oficial da seleção brasileira aconteceu em 21 de julho de 1914.
No aniversário de 90 anos da Independência do Brasil, em 1912, o ex-presidente argentino Julio Roca foi enviado ao Brasil pelo então presidente Roque Sáenz Peña para amenizar as tensões comerciais e militares que os países viviam naquele momento.
Os argentinos venceram por 5 a 0, no Estádio das Laranjeiras, no Rio. O jogo também não é reconhecido oficialmente pela Fifa e pela CBF, porém a AFA contabiliza a vitória no histórico com o Brasil.
Duelo em Copas e provocações
O Brasil já era tricampeão do mundo (1958, 1962 e 1970) quando enfrentou a Argentina pela primeira vez em Copas. O duelo aconteceu na edição de 1974, na Alemanha. A seleção venceu, por 2 a 1, e eliminou o rival. Os “hermanos” sediaram o Mundial pela primeira vez quatro anos depois e voltaram a encarar os brasileiros no torneio.
Depois de um violento jogo sem gols, os argentinos se classificaram para a final com a polêmica vitória, por 6 a 0, sobre o Peru. Na final, venceram a Holanda e levantaram o caneco.
O Brasil volta a encarar a Argentina na Copa do Mundo de 1982, na Espanha. O time de Sócrates, Zico e Falcão decretou a eliminação argentina com uma vitória por 3 a 1 na Segunda Fase, mas caiu para a futura campeã Itália ao ser derrotada por 3 a 2, na mesma etapa.
Os argentinos, que seriam campeões em 1986, voltariam a entrar no caminho do Brasil em 1990, naquele que é o capítulo mais famoso do confronto entre as seleções em Copas.
A Argentina eliminou o Brasil nas oitavas por 1 a 0, com gol de Caniggia após boa jogada de Maradona. Um massagista argentino teria oferecido uma garrafa de água “batizada” com um sonífero ao lateral Branco. Até os dias atuais os argentinos tiram sarro do episódio.
Além de diversas decisões de Copa América, Brasil e Argentina já se enfrentaram na final da Copa de Confederações de 2005, na Alemanha, torneio extinto pela Fifa após 2017. Na partida decisiva, a seleção brasileira goleou por 4 a 1, com gols de Adriano, duas vezes, Kaká e Ronaldinho Gaúcho.
Foi na Copa de 2014, no Brasil, que a rivalidade voltou a crescer. Apesar de as seleções não terem se enfrentado, os argentinos, que vieram em peso ao País, ficaram marcados por cantar uma música em provocação aos brasileiros.
“Brasil, decime qué se siente” relembra justamente a eliminação da seleção na Copa de 1990. Como os argentinos ficaram com o vice, os brasileiros também não perdoaram. No duelo entre as equipes, é comum a torcida verde-amarela entoar canções com os versos “Eta eta eta, Messi não tem Copa quem tem é o Vampeta”.
Na última Copa América, disputada em 2021, essa rivalidade entre Brasil e Argentina foi resgatada, após a decisão que terminou com o primeiro título de Messi por sua seleção. Na comemoração, os jogadores argentinos comemoraram, no Maracanã, entoando cânticos próprios da torcida que provocam a seleção brasileira.
Casos de racismo
Um argumento usado por quem decide não torcer pela Argentina independentemente de não ser em jogos contra o Brasil, é o histórico de racismo de torcedores rivais. Recentemente, diversos casos de injúria racial foram registrados em jogos entre brasileiros e argentinos na Libertadores, terminando até mesmo em caso de polícia.
Um destes aconteceu na fase de grupos de 2022, na partida entre Corinthians e Boca Juniors, no qual um torcedor xeneize foi levado à delegacia após imitar gestos de um macaco em direção à torcida corintiana. Ele foi solto após o pagamento da fiança.
Nem mesmo a imprensa argentina passa incólume. Em 1920, a seleção brasileira viajou a Buenos Aires para disputar um amistoso e foi surpreendida por uma charge de um jornal local que os retratavam como macacos. Quatro jogadores negros faziam parte daquele no elenco e se recusaram a entrar em campo.
A Argentina aceitou entrar em campo com quatro a menos para que o jogo fosse realizado, e venceu por 3 a 1.
Em 1996, o jornal Olé, principal diário esportivo da Argentina, estampou na manchete de capa a frase “Que vengan los monos” (“Que venham os macacos”, em tradução livre). O título era referente à vitória sobre Portugal na semifinal olímpica daquele ano. Brasil e Nigéria disputavam a segunda vaga, que terminou ficando com os africanos.
Três meses depois, o periódico publicou um editorial se retratando do caso, negando qualquer teor racista no termo “macacos”, afirmando ser quase institucional zombar qualquer brasileiro, independentemente do tom de pele, de macaco.
Mariano Hamilton, um dos chefes do Olé na época, fez carreira como comentarista na Argentina e continuou pedindo desculpas pela capa anos mais tarde.
Assim como os territórios da América Portuguesa durante o período colonialista, a Argentina também tem em sua história um passado escravocrata. Mesmo assim e diferentemente do Brasil, demorou para haver o reconhecimento da influência da cultura negra e indígena para a constituição de uma identidade cultural argentina.
“Essa sociedade (argentina) se via como europeia e essa ideia ainda persiste em alguns núcleos no país”, conta Doratioto.
No último ano, o presidente argentino Alberto Fernández chegou a declarar que “os mexicanos saíram dos índios, os brasileiros da selva, mas nós argentinos chegamos dos barcos, que vinham da Europa.” A fala retrata a visão, ainda preconceituosa, que persiste no território, segundo Doratioto.
O chefe de Estado pediu desculpas e se retratou após a repercussão da declaração.
Rivalidade sul-americana atual
Duzentos anos após a independência do Brasil, a origem dos conflitos entre as duas principais nações sul-americanas se desgastou com o tempo. Ao longo do último século, as políticas brasileiras e argentinas se modificaram, com aproximações e distensões contínuas.
“Tanto Brasil quanto Argentina observaram, nas últimas décadas, possibilidades de substituir a rivalidade pela parceria e cooperação”, analisa o professor da UnB.
O pior momento nas relações entre as nações ocorreu nos anos 1970. À época, Brasil e Argentina viviam passavam por ditaduras próprias. Durante os governos dos presidentes Médici e Geisel, o País iniciou os projetos para a construção da usina hidrelétrica de Itaipu.
“A Argentina enxergava nesse projeto uma vitória geopolítica do Brasil na geopolítica no Rio da Prata”, afirma Doratioto. A inauguração acontece em 1984, no governo de João Figueiredo, quando há uma distensão nas relações bilaterais entre os países.
Desde então, este contexto político foi deixado de lado na rivalidade entre brasileiros e argentinos. O esporte, que já era um fator para a consolidação da identidade nacional dos países no último século, ascendeu como o principal elemento de rivalidade no Cone Sul.
Em 27 de setembro de 1914 acontece a primeira partida da Copa Roca, hoje chamada de Superclássico das Américas. Instituída pelo então presidente argentino Julio Argentino Roca, que dava nome ao troféu, a competição ajudou a fortalecer a rivalidade entre as nações, além da Libertadores, Copa América e Copa do Mundo.
“A rivalidade dos brasileiros com a Argentina se dá, basicamente, como o resultado de uma característica cultural, até mesmo de costumes, por assim dizer”, conta Doratioto.
A expansão dos contextos políticos nos últimos séculos transborda para os esportes, não somente o futebol. Basquete e vôlei são outros exemplos de uma rixa entre os países vizinhos. “Eu acredito ser muito exagerada essa rivalidade”, explica Feliciano.
“Com o Mercosul, o retorno dos países à democracia, essas disputas se tornam muito anacrônicas.” O professor da USP afirma que irá torcer pela Argentina contra a França. “A rivalidade efetiva no futebol deveria ser dos sul-americanos contra o predomínio europeu.”