O couro dá sinais de ressecamento devido a ação do tempo. O preto, outrora reluzente, apresenta indícios de desgaste – o cheiro é típico do que está guardado há anos, bem longe da academia, mas o velcro ainda aperta os punhos com a mesma eficiência de uma década atrás. A combinação de ingredientes é o que torna o par de luvas utilizado por Murilo Bustamante para nocautear Dave Menne e garantir para o Brasil o inédito título do UFC, em 2002, um objeto especial.
– Eu não usava atadura. Não gostava, achava que ia escorregar da minha mão – afirma Murilo, enquanto coloca as luvas em sua academia, a Brazilian Top Team, na Zona Sul do Rio, onde o cinturão do UFC repousa na parede.
O par fica guardado em uma bolsa, na casa de Murilo Bustamante. O tesouro fica misturado às demais luvas usadas pelo veterano em outros confrontos. Ele precisou fazer uma busca para resgatá-las, porém, não teve dúvidas para identificá-las.
– Tive que analisar luva a luva. Eu tenho quatro luvas do UFC, das quatro lutas lá. Uma é diferente da outra. Duas são iguais e essa é diferente, é o modelo antigo, o que ainda tinha proteção no dedo. Era uma marca que não é mais a mesma que faz para o UFC. As luvas vieram mudando até o modelo atual. Esse foi o segundo modelo da Zuffa (empresa que detinha os direitos do Ultimate à época). O primeiro evento que eu lutei, contra o Chuck Liddel, era um modelo. Esse é outro. É bem confortável na mão. Já me pediram para doar ou vender, já me propuseram isso. Eu não tenho interesse. Acho que a lembrança é muito mais interessante para mim. A luva foi de fundamental importância porque protegeu minha mão no nocaute que eu apliquei no Dave Menne – explica Bustamante, em entrevista ao Combate.com.
Embora tenha feito nove lutas pelo Pride, Murilo Bustamante não tem o mesmo número de luvas do evento japonês. Ele revela que era uma “guerra” para conseguir ficar o objeto, pois os organizadores confiscavam depois dos combates.
– No Pride era uma dificuldade, os japoneses não deixavam ficar, era uma briga, a gente tentava pegar de qualquer maneira. Eu tenho uma que levei na marra. Acho que eles leiloavam as luvas depois. A gente botava na bolsa, tentava burlar isso para poder ficar de lembrança. Acho que tenho uma, que consegui travar. Nós pegávamos na mão grande, botava dentro da bolsa e tentava. Todo mundo queria levar a luta de lembrança. Era uma guerra (risos). No UFC eles dão as luvas paras o lutadores. É uma grande recordação, eu guardo com carinho, assim como os shorts. É uma lembrança da minha vida, quando estiver velhinho com meus netos, vou ter história para contar e a luva para mostrar.
Os 15 anos – completados no último dia 11 de janeiro – não parecem tão distantes para Murilo Bustamante. O ex-atleta, que se aposentou justamente contra Menne, após vitória por pontos em 2012, no AFC, em Manaus, consegue viajar no tempo com boa clareza ao recordar tudo que antecedeu o duelo válido pelo título do Ultimate.
– Quando eu pego a luta e começo a pensar nas lembranças, muita coisa vem à cabeça. A viagem, os treinos no hotel, o primeiro dia, o segundo dia… até o desfecho da luta por nocaute, a conferência de imprensa depois. Tenho muitas recordações da viagem toda, não só do momento da luta. Sair do Brasil, ir lutar… isso tudo são memórias que ficam. A luta é mais marcante, mas para mim o momento mais importante é o contexto todo.
Pupilo de Carlson Gracie e faixa-preta de jiu-jítsu, Murilo encontrou na trocação a via para despachar Menne. O fato causou estranheza a muitos fãs – mas não a ele, que sempre gostou de afiar o boxe. O que surpreendeu o brasileiro foi se comportar tão bem no cage após se sentir mal horas antes do embate.
– É tudo claro na minha memória. Eu passei mal no dia da luta, estava meio enjoado. Aí tomei um digestivo que me ajudou. Tinha comido alguma coisa que me fez mal, no vestiário estava muito mal. Estava preocupado com aquilo. O remédio me ajudou a botar para fora, fui melhorando, aquecendo e lá deu tudo certo. Saí sem um arranhão. Era um cara campeão mundial, podia acontecer várias coisas, e eu entrei, lutei e saí inteiro. Em outras lutas, mais fáceis, me machuquei, mas nessa, que era contra um campeão mundial, eu não tive um arranhão. Minha mão estava afiada, apesar de eu ser especialista em jiu-jítsu. Comecei a treinar boxe aos 18 anos de idade. Quando me machucava no jiu-jítsu, sempre parava e ia treinar boxe. Quando fiz minha primeira luta de Vale-Tudo, no Desafio Jiu-Jítsu x Luta Livre, contra o Marcelo Mendes, comecei a treinar boxe de verdade e a fazer sparring sério.
Murilo Bustamante planeja colocar o uniforme que trajava na luta em um quadro e, também, poderá juntar na coleção o que guardou de seu reencontro com Dave Menne, em 2012, no AFC, no duelo que encerrou sua carreira no MMA.
– Foi muito legal, bacana da parte dele aceitar. Fizemos uma luta interessante, que acabou sendo a minha última. Foi um evento profissional, dei a ele o direito da revanche, embora já estivéssemos fora de época, pois nós dois não estávamos mais no UFC, éramos dois veteranos. Foi interessante, temos muito respeito um pelo outro. Não temos intimidade, mas nos respeitamos.
Fonte: Combate