O número surpreende, mas é possível porque, além dos órgãos, ossos e tecidos também podem ser transplantados.

Os receptores dos órgãos do apresentador vivem nos Estados Unidos, uma vez que foi em sua casa na Flórida que Gugu sofreu o acidente que o levou à morte. Mas, segundo especialistas, o número alto de beneficiados também poderia ser alcançado no Brasil.

— Aqui no Brasil é igualzinho, o que faz lá nos EUA se faz aqui — afirma o conselheiro da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) José Medina Pestana, diretor do Hospital do Rim em São Paulo. — Se você doar duas córneas, dois pulmões, coração, pâncreas, dois rins e fígado, que pode ser dividido em dois, dá dez órgãos. A família também doa ossos, pele, ligamentos, tecidos, que podem ser usados e preservados, mas isso não é o mais frequente.

Os ossos podem ser usados por quem sofre com fraturas, esmagaduras em acidentes ou tumores ósseos. A pele é destinada, principalmente, a quem sofre com extensas queimaduras.

Ao contrário dos órgãos que têm que ser transplantados em poucas horas, ambos podem ser usados em pedaços menores e preservados por meses. Ou seja, um fêmur pode ajudar muita gente.

Doações no Brasil são via SUS

O Brasil é o 23º no ranking do Registro Internacional de Transplantes e Doações de Órgãos, com a taxa de 17,7 doadores efetivos por milhão de habitantes. Os Estados Unidos estão em quinto (32 doadores/milhão de habitantes) e a Espanha, em primeiro (48,3 doadores/milhão de habitantes).

Em números absolutos, o Brasil está sem segundo lugar, atrás apenas dos EUA —por conta do tamanho de suas populações.

Todo o programa brasileiro é feito pelo SUS, ou seja, é gratuito, assim como a medicação que os transplantados precisam tomar, de uso contínuo. Há uma lista nacional única de pacientes, que segue três critérios para decidir quem receberá os órgãos disponíveis: compatibilidade (nem todos podem receber qualquer órgão), tempo de espera e gravidade da doença.

Também são levados em conta questões de logística e de transporte do órgão.

Já nos EUA, os transplantes são feitos por convênio ou por planos de saúde que, após determinado período, deixam de cobrir os remédios.

— Temos um dos maiores programas de transplante do mundo. Se for olhar pelo lado macro, o Brasil está muito bem. Não estamos na Europa, não somos uma economia tão forte e temos proporções continentais — afirma a coordenadora de transplantes e médica nefrologista da Fundação Pró-Rim e Hospital Municipal São José, em Joinville, Luciane Deboni.

 

Além disso, diferentemente da Espanha, onde a doação é compulsória, no Brasil a autorização cabe à família.

Dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos mostram que cerca de 43% das famílias ainda se recusam a doar, o que significa que o número de doações poderia quase dobrar se todos aceitassem.

— Em 1997, tentaram tornar a doação compulsória e as pessoas se sentiram agredidas no seu direito de escolha. Voltaram atrás, pedindo autorização da família, porque o Brasil não está maduro para isso. O importante é cada um dizer o que quer, e que a família possa respeitar essa vontade — diz Luciane Deboni.

A família pode escolher o que quer doar, embora o mais comum seja que, uma vez dedida pela doação, fique até ofendida caso algum órgão não possa ser aproveitado.

O que nenhuma família pode fazer é indicar para quem quer que o órgão vá. Uma vez aprovada a doação, é seguida uma lista nacional do SUS, respeitando a compatibilidade.

‘Ela continua viva em outras pessoas’

No dia mais difícil da vida de Mailde Giordani,33, ela não tinha dúvidas sobre o que deveria fazer.

— Um tempo antes, num almoço de domingo, eu estava falando que sou doadora de sangue, de medula e que gostaria de doar meus órgãos. Ela disse: ‘Irmã, se acontecer alguma coisa comigo, eu também quero ser doadora’. Então eu não tive dúvidas. —conta Mailde. — O nome dela era Patricia Akani Nakajima, e Akani significa brilho, luz em japonês. E ela está brilhando, dando oportunidade para dez pessoas terem uma nova chance. Conforta o coração da família saber que ela continua viva em outras pessoas.

Mailde considera que ainda há um tabu em falar sobre morte e, consequentemente, sobre a doação. Mas, para ela, a atitude ajudou a enfrentar a dor do luto.

— Sinto uma saudade que não tem tamanho, minha mãe também, mas saber que alguém está vivo pela atitude que a gente tomou, graças a um órgão da minha irmã, ameniza, de uma certa forma. Não vejo sentido em enterrar um órgão que está bom. A maior prova de amor que você pode ter pelo seu semelhante é doar.

Do outro lado está alguém como a economista Patricia Fonseca, 34. Ela nasceu com uma série de má formações no coração e sua vida foi marcada por internações, médicos e um cansaço que chegou a tirar suas forças para falar.

Sua situação se agravou a tal ponto que, no dia do seu aniversário de 30 anos, estava internada na UTI.

— Eu estava dormindo e a enfermeira apareceu com um telefone. Eu me perguntei quem iria me parabenizar tão cedo. Era o meu médico e ele disse: ‘Patricia, aguenta firme, seu coração chegou’. Eu chorei, foi o dia mais feliz da minha vida. O hospital todo chorou junto, parecia que o coração era de todo mundo. Fui para o centro cirúrgico para renascer.

A vontade de viver da economista é impressionante: ela se tornou atleta de triatlon, participou de olimpíadas para transplantados e criou uma organização chamada Sou Doador, pela qual, inclusive ajudou a criar o Projeto de Lei Tatiane, no qual pede que a importância da doação de órgãos seja ensinada nas escolas.

— Eu vivo um sonho. É tudo tão distante da vida que eu tinha antes, a energia que eu tenho hoje, eu nunca tive. Não sei como descrever a gratidão que eu sinto por esse alguém que disse um sim, em algum lugar do Brasil, e salvou a minha vida — afirma.

Doação de famosos serve de exemplo

De acordo com Medina Pestana, da ABTO, quando uma pessoa famosa como Gugu tem os órgãos doados, há um aumento nas doações de até 30% por algumas semanas, que depois cai e se estabiliza, mas num patamar superior ao de antes.

— O número de doadores cresce em degraus à medida que vai sendo assimilado culturalmente. Depois de um evento desses, sempre fica um pouco acima do que estava.

A médica Luciane Deboni pede que as pessoas abordem o assunto com seus familiares assim que tiverem oportunidade, mas de forma serena.

— Se isso não foi conversado anteriormente, num momento de muita dor tem gente que não consegue pensar no assunto. Poucas pessoas têm uma decisão concreta de ‘eu não quero ser doador’. Na maioria das vezes é uma tragédia, uma morte encefálica, um acidente, sempre de uma hora para outra.

Outro motivo que pode levar uma família a não autorizar a doação, de acordo com ela, é uma decepção com o atendimento médico que possa gerar algum tipo de revolta na família, além da dor.

A enfermeira Vanessa Ayres Carneiro Gonçalves é coordenadora da Organização de Procura de Órgãos da Escola Paulista de Medicina, conversa com familiares e tem clareza sobre o que provoca o ‘não’:

— O principal motivo que as famílias dão para não doarem é não saber a vontade do parente em vida. Antigamente, tínhamos o aspecto religioso, mas hoje isso não acontece mais, tanto que fazemos um evento inter-religioso anual em que levamos católicos, judeus, evangélicos, espíritas e até testemunhas de Jeová, que doam e recebem porque não há sangue, os órgãos ficam em um líquido de preservação — afirma Vanessa Gonçalves.