A Anvisa concedeu o registro para a comercialização no Brasil de uma vacina tetravalente contra a dengue. É a primeira vacina comercializada no mundo e é fabricada pela empresa multinacional de matriz francesa Sanofi Pasteur. A vacina recém-lançada reivindica um avanço tecnológico respeitável, que é o de ter encontrado um caminho para a proteção dos quatro sorotipos da doença sem que a imunidade alcançada contra um sorotipo tenha efeitos deletérios para pacientes que se infectem com qualquer dos outros três sorotipos.
O registro na Anvisa é baseado no exame da eficácia e segurança do produto. Nada diz quanto à sua efetividade e muito menos sobre o custo-efetividade. Naturalmente, a incorporação da vacina no Programa Nacional de Imunizações do SUS deverá levar em conta todos esses requisitos e o processo de incorporação deverá ser liderado pela Comissão Nacional de Incorporação Tecnológica (Conitec) do Ministério da Saúde. Abaixo, alguns comentários sobre aspectos que não ficam claros no noticiário da imprensa.
Há bastante tempo, a Organização Mundial da Saúde vem acompanhando o desenvolvimento das epidemias da doença, bem como estabelecendo padrões mais ou menos homogêneos de enfrentamento do problema pelos países-membros. O principal produto da OMS sobre o tema é o “Global Strategy for dengue prevention and control, 2012–2020 – WHO report”, publicado em 2012 [World Health Organization – Global Strategy for dengue prevention and control, 2012–2020]. Nessa estratégia há um capítulo específico para as vacinas onde são elencados os principais aspectos a serem levados em conta pelos órgãos de saúde pública dos países-membros quanto à incorporação de vacinas contra a dengue.
“Evidence-based decision-making on the introduction of vaccines and their use will require not only reliable data on vaccine product characteristics (e.g. safety, efficacy, cost) but also information on effective vaccination strategies, their likely impact on disease burden and cost effectiveness. Moreover, various issues related to vaccine implementation (e.g. integration into the national immunization programme; logistics of vaccine storage and transport; financing and supply) will have to be addressed (WHO, 2005b). Assuming proof of concept is met, some of the challenges for vaccine delivery are already evident: (i) the population at risk of dengue is huge and occurs throughout the tropics. It will be necessary for endemic countries to have rational means for deciding which segments of the population to protect when national resources or vaccine supply are limited; (ii) ease of delivery and cost will limit implementation. Ideally, a vaccine will be administered as a single dose, will protect against all four viruses, and will have a long duration of efficacy with no significant side-effects. In reality, some or all of these ideals will not be met. A vaccine that requires multiple doses, for example, or which cannot be incorporated in an expanded programme on immunization will require supplementary investments into delivery infrastructure; (iii) post-approval studies, monitoring of vaccinated populations and strong regulatory competency in dengue-endemic countries will be needed; (iv) the role of vector control, surveillance and case management in enhancing the impact of the vaccine must be determined. Although each country will require a different combination, some basic guidance for decision-making must be developed; (v) there is a possibility that dengue could be eliminated from some regions, such as islands or low endemic areas. How and where such a special target could be reached should be determined” [o grifo é meu].
Adesão às três doses é desconhecida
O Brasil tem estado muito bem representado nos comitês técnicos da OMS sobre as estratégias de controle da dengue e, mais especificamente sobre as vacinas que se apresentarem. Os professores Expedito Luna (IMT/USP) e Glória Teixeira (ISC/UFBa) tomaram parte no Technical advisory group on dengue vaccines in late stage development (May 2012-March 2015) . E a professora Maria Novaes (FM/USP) compõe atualmente o novo grupo de experts criado em 2015 que analisará as vacinas disponíveis provavelmente em abril de 2016.
Como se pode notar do trecho da estratégia da OMS para o combate à dengue mediante vacinas, reproduzido acima, além das características intrínsecas da vacina devem ser analisados aspectos relativos a custo, logística e adesão, além de evidências relativas à duração da imunidade. É importante enfatizar isso posto que a descrição do impacto da vacina apresentado pela Sanofi parece trabalhar exclusivamente com extrapolações baseadas nas características intrínsecas do produto [press release – Dengvaxia®, World’s First Dengue Vaccine, Approved in Mexico(December. 2015). A fonte das evidências disponíveis está publicada em artigo da revista Vaccine[Coudeville, L. et. al. – Estimation of parameters related to vaccine efficacy and dengue transmission from two large phase III studies. Vaccine. 2015 Nov 21.http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X15016655].
De acordo com a Sanofi, de cada 100 brasileiros suscetíveis a pelo menos um dos quatro sorotipos da dengue, cerca de 70 estarão enquadrados na faixa etária de nove a 45 anos, que é a faixa para a qual a vacina está liberada. É possível que a cifra de 70% esteja algo inflada, considerando haver um aumento de casos de dengue e de formas severas da doença no Brasil em crianças abaixo de 10 anos [Luciano P. Cavalcanti, Dina Vilar, Reinaldo Souza-Santos, and Maria G. Teixeira – Change in Age Pattern of Persons with Dengue, Northeastern Brazil. Emerg Infect Dis. 2011 Jan; 17(1): 132–134.
A adesão às três doses recomendadas com um intervalo semestral é desconhecida, porém suspeito que não será fácil chegar a uma taxa elevada de adesão. Estudos relativos à vacina sazonal contra a gripe mostram que, para esta, a adesão está em torno a 75%. Notar que a vacina contra a gripe é dada em dose única, o que facilita muito a adesão. Estimemos por hipótese uma adesão à vacina de cerca de 50% dos indivíduos na faixa etária recomendada pela Sanofi [Luna, E. et al. – Efetividade da estratégia brasileira de vacinação contra influenza: uma revisão sistemática. Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília, 23(3):559-575, jul-set 2014.http://www.scielosp.org/pdf/ress/v23n3/1679-4974-ress-23-03-00559.pdf e Oliveira, J.F.M. – Efetividade da vacinação contra gripe no contexto brasileiro: análise comparativa do programa nas regiões NE e S. Dissertação de mestrado apresentada na FSP/USP. 2012.
317.500 de 1.587.080 casos teriam sido evitados
Naturalmente, a eficácia anunciada para a vacina – cerca de 66% na média para os quatro sorotipos – deve ser calculada sobre (1) a população na faixa etária recomendada e que (2) aderir às três doses semestrais. Em outras palavras, isso significa que nos testes de fase III observou-se que dentre as pessoas entre nove e 45 anos que tomaram três doses da vacina a frequência da doença foi cerca de 66,6% menor do que entre os que não tomaram a vacina – cerca de 2/3 das pessoas naquelas condições foi protegida da doença.
Isso leva a que, de cada 100 pessoas de uma população de todas as faixas etárias, estarão protegidos da doença cerca de 23 indivíduos. (100 indivíduos x 0,7 na faixa preconizada x 0,5 de adesão x 0,66 de eficácia média = 23,1).
Embora os quatro sorotipos circulem atualmente no Brasil, as ondas epidêmicas costumam apresentar um sorotipo (DENV) predominante. Como a eficácia da vacina varia segundo os sorotipos (dados da Sanofi), de cada 100 indivíduos, o número de pessoas protegidas, conforme seja o DENV predominante, será de aproximadamente: DENV1-20; DENV2-17; DENV3-26; DENV4-29. Em 2015, as proporções dos sorotipos virais identificados no Brasil foram: DENV1-93,7%, seguido de DENV4 -5,2%, DENV2 – 0,7% e DENV3- 0,4% [Boletim Epidemiológico Secretaria de Vigilância em Saúde − Ministério da Saúde, Volume 46, n° 44 – 2015.
Isso significa que a efetividade da vacina, caso essa cobertura já estivesse sido atingida no início de 2015, teria sido de evitar 20 de cada 100 casos. Extrapolando, teriam sido evitados 317.500 dos 1.587.080 casos notificados em 2015.
Alcançar essa cobertura implicaria ter vacinado 61.115.941 pessoas, que é a projeção estimada para 2015 pelo IBGE para a faixa etária de nove a 45 anos [estimativa IBGE para a população brasileira na faixa 9-45 anos. Considerando as três doses para cada pessoa, seriam 183.347.823 doses de vacina em 18 meses.
Produto exige três doses com longo intervalo
A redução nas taxas de internação anunciada pela empresa é de 81% entre os que aderiram às três doses da vacina em relação aos não vacinados. Segundo o Boletim Epidemiológico do MS, em 2015 ocorreram em todo o país 19.739 casos de dengue “com sinais de alarme”. Assumindo que “casos com sinais de alarme” correspondam a “casos internados” e supondo que os casos de internação se distribuam igualmente em todas as faixas etárias (o que não é correto, haja vista que crianças e idosos costumam apresentar mais frequentemente quadros passíveis de internação e estes estão fora da faixa etária recomendada para tomar a vacina) isso significa que a vacina, caso essa cobertura já estivesse sido atingida no início de 2015 teria evitado 5.596 internações (19.739 “internações” x 0,7 pessoas na faixa preconizada x 0,5 de adesão x 0,81 de eficácia).
A Folha de S.Paulo atribui ao ministro Marcelo Castro uma referência ao preço de R$ 85,00 por dose. Esse preço refere-se à compra por particulares em farmácias ou clínicas e o preço de compra por governos, que deverá envolver grandes quantidades de produto, será significativamente menor. Mas ainda não há qualquer ponto de referência, haja vista não terem sido concluídas negociações por qualquer país e, aqui no Brasil, o produto ainda não ter sido examinado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que estabelece preços máximos de medicamentos e correlatos para o mercado em geral. Entretanto, vale lembrar que produtos novos e, principalmente, produtos sem concorrência, costumam ter preços mais inelásticos.
No que toca o mercado público (SUS), não acredito que numa eventual compra pelo Ministério da Saúde, o deságio alcance mais do que 30% em relação ao preço referido pelo ministro. Mas confiando na capacidade negocial das autoridades, se estimarmos uma redução de 50% daquele preço, a despesa com um ciclo completo de vacinação – três doses para a população na faixa etária preconizada – será de aproximadamente R$ 7,8 bilhões, o que equivale a cerca de metade do que o Ministério da Saúde projeta gastar em 2016 com a compra de medicamentos (todos). É claro que sempre se poderá adotar uma estratégia incremental para a implementação da vacina, começando a sua adoção por populações mais expostas ao risco de adoecer. Com isso, aquela despesa será diferida no tempo.
Outro aspecto ainda obscuro diz respeito à duração da proteção conferida pela vacina. Os estudos fase III da empresa concluíram que em crianças, a proteção apresentou um decaimento importante ao longo de alguns anos de acompanhamento da coorte dos estudos. Esse foi um dos motivos para a não recomendação da vacinação para menores de dez anos e está relacionado à menor eficácia da vacina em indivíduos que nunca tiveram contato anterior com algum dos sorotipos da dengue. Conclusões a respeito das demais faixas etárias só estarão disponíveis com acompanhamento mais extenso da coorte de estudo e de eventuais investigações em populações de países que incorporarem a vacina em seus programas de vacinação.
A vacina que vem sendo desenvolvida pelo Instituto Butantã em parceria com o NIH/EUA é projetada para ser dada em dose única, o que lhe confere, em caso de sucesso, grande vantagem competitiva, seja em termos de adesão, seja em termos de preço por imunização. A dificuldade é que está ainda em fase de testes, não havendo previsão fundada em evidências firmes para o seu lançamento no mercado. O período de desenvolvimento e produção da vacina da Sanofi durou em torno de 20 anos, com recursos humanos e financeiros abundantes. A vacina que está sendo testada pelo Butantã tem cerca de 10 anos de desenvolvimento.
É certo que uma vacina contra a dengue (que não protege contra chicungunha e zika) poderá vir a ser uma ferramenta importantíssima para frear a velocidade da disseminação da doença no mundo. Mas é necessário levar em conta as suas características intrínsecas (eficácia e segurança) e, principalmente, os fatores extrínsecos à sua adoção, relativos às possibilidades de acesso à mesma que dependem do seu preço, das condições logísticas de fazê-la chegar à população sob risco e da disposição das pessoas em aderir a ela (quanto a isso, chamo a atenção dos recentes recrudescimentos de doenças controláveis por vacina nos EUA e na Europa em decorrência das mitologias que tentam associar vacinas ao autismo).
Pelo exposto, entende-se que este produto da Sanofi ainda é imperfeito por se encontrar distante das características necessárias para ser introduzida em populações residentes em países hiperendêmicos como o Brasil, pois, em síntese, apresenta baixa eficácia, três doses e longo intervalo entre as mesmas (não possibilita bloqueio de surtos), indicada para faixa etária restrita que a depender do momento epidemiológico pode não se constituir na indicada para reduzir a força de transmissão do vírus do dengue. Além disso, até onde se possa perceber, seu custo é inexequível para a saúde pública, especialmente no atual contexto econômico do país.
Observatório da Imprensa