A sanfona encostada em um canto da sala lacrimeja a saudade da multiartista nordestina. Instrumento que já se transformara apenas em objeto de decoração… A paraibana Lucy Alves e suas escolhas dentro do draconiano mercado musical nos remete ao sebastianismo iugoslavo: Lucy Alves, aquela que não foi, mas poderia ter sido! Lucy Alves, aquela que foi e não mais será…
Há muitas formas de morrer e muitas mudanças dentro da morte. Na verdade, há uma imensidão de possibilidades de renascimento quando se morre. Lucy Alves escolheu morrer de várias formas. A primeira delas é no nome. A cantora e multi-instrumentista defenestra o sobrenome e passa, a partir de agora, a usar como nome artístico apenas ‘Lucy’. Mais curtinho. Mais facinho. Mais popular…
Lucy Alves… Ops!!! Lucy acaba de lançar o single ‘Santo forte’ e seu EP (que leva seu próprio nome) já está disponível em plataformas digitais, como Spotify, Napster, Tidal e Deezer. O single parece uma pá de cal na sepultura daquela sanfoneira que encantou o Brasil em 2013 (quando foi finalista do programa The Voice Brasil). Artista que já nos encantara na época do Clã Brasil (grupo formado por ela e sua família – pai, mãe e irmãs). O Clã foi um nascimento. ‘Santo forte’, uma morte…
’18 minutos de martírio’
O EP foi lançado no final da manhã de sexta-feira (28). Além das faixas ‘Santo forte’, ‘Bão’ e ‘Sem juízo’, EP traz ‘Beija flor’, ‘Sentir’ e ‘Florescente’. Uns 18 minutos de duração. Uns 18 minutos de martírio, que mais parecem uma hora…! Sabe o que é jogar talento no lixo? Lucy sabe…
Fez uma escolha. Chora, sanfoninha. Chora… chora… De verdade!!! Na faixa ‘Sentir’ tem até uma sanfona dando uma ‘enganadinha’, mas não tem nada com forró. Só pode ser uma espécie de sabotagem de si mesma… Perdeu-se no caminho. Matou a si mesma.
O EP de Lucy é um disco de um artista disposto a ser produto de massa. É um CD de quem não está nem aí para a crítica especializada. É um produto voltado para o fast food do mercado fonográfico. O que ele representa no panorama histórico? Nada. Lucy está apenas fazendo o jogo das grandes gravadoras. O talento virou somente um detalhe…
‘Lucy não quer ser Elba’
‘Santo forte’ mostra – definitivamente – que Lucy não quer ser aquilo que esperávamos dela (e nem teria obrigação de querer): uma forrozeira. Mais que isso, uma multiartista capaz de – em algum tempo – substituir a figura de Elba Ramalho no cenário nacional… Lucy não quer ser Elba. Lucy quer ser Beyoncé. Lucy quer ser Shakira. Claro que não consegue. Apenas desperdiça um talento gigantesco ao atender às orientações do mercado fonográfico.
E é se rendendo ao sistema das grandes gravadoras que Lucy se depara com mortes e mais mortes. Está de olho em renascimentos que possam justificar o sucesso e a massificação de sua nova arte, dentro desses processos tão subjetivos que envolvem a tal da perda da aura na era da reprodutibilidade técnica…
‘Santo forte’ é uma composição de Arthur Marques, um hitmaker do mesmo time de Bruno Caliman. Aliás, Lucy anda de braços e abraços com hitmakers desde que assinou contrato com a Warner. Primeiro foi com Bruno Caliman (que compõe para Luan Santana, por exemplo), quando lançou ‘Caçadora’. Com essa música, incluída em trilha sonora de novela, Lucy teve de enfrentar críticas. Mas, pasme: perto de ‘Santo forte’, ‘Caçadora’ é até interessante…
‘Shakirando’ a carreira
A moça do pé-de-serra deixou o sítio e foi bater em Nova York… Shakirando sua carreira, Lucy canta tudo. Menos o forró. Seu novo EP tem participações do rapper RAPadura Xique-Chico, do grupo Àttooxxá e da angolana Titica. Eles participam de duas faixas: ‘Bão’ e ‘Sem juízo’, que tem um ar de kuduro.
Apesar das críticas com relação às novas escolhas, a paraibana demonstra-se satisfeita e determinada. Matar aquela Lucy Alves não parece ser motivo de arrependimento. Olha um trechinho da letra de ‘santo forte’, que pode ilustrar esse momento da artista: “Meu santo é forte. / Eu não tenho medo da sorte. / Se quiser pode até tentar me derrubar. / Vem que tem. / Pode chegar”.
Entre ‘Caçadora’ e ‘Santo forte’, Lucy havia gravado ‘Doce companhia’ para a abertura da novela ‘Orgulho & paixão’. A música é versão em português de ‘Dulce compañia’, canção da estrela mexicana Julieta Venegas, lançada há 12 anos pela autora no álbum ‘Limón y sal’ (2006).
A letra em português foi escrita por Fernanda Takai, que apresentou a versão há quatro anos no álbum solo ‘Na medida do impossível’ (2014). O arranjo da gravação de Lucy Alves deixou tudo ainda mais pop. E é o que devemos esperar de Lucy: que ela fique cada vez mais pop, formando parcerias com aqueles que compõem em escala industrial para os cantores mais populares do universo pop brasileiro.
Indicação ao Grammy
Nunca é demais lembrar que a cantora, musicista e atriz de João Pessoa, Lucy Alves já foi indicada ao Grammy Latino. Ela disputou a categoria de melhor álbum de músicas de raízes brasileiras, pelo disco ‘No Forró do Seu Rosil’, gravado juntamente com o grupo Clã Brasil. Com esse trabalho, Lucy concorreu ao lado de Heraldo do Monte, com o disco ‘Heraldo do Monte’, Alceu Valença com ‘A Luneta e o Tempo’, Elba Ramalho com o disco ‘Cordas, Gonzaga e Afins’, e Almir Sater e Renato Teixeira, apresentando o disco ‘AR’. Olha o time!!!! Lucy parece não querer mais saber das raízes…
E por falar em Grammy, ‘Santo forte’ foi formatada no estúdio pelo produtor Felipe Rodarte, o mesmo que colocou The Baggios na disputa do Grammy Latino. A morte de Lucy Alves é a morte da moça que abandona a roça. A multiartista que atuou muito bem na novela ‘Velho Chico (2016) sonha pop. Seus últimos trabalhos mostram isso explicitamente.
Seu novo EP tem seis faixas bem significativas do atual momento da paraibana. Imagine pessoa que tenha assistido ao The Voice Brasil de 2013 e que, por cinco anos tenha ficado em estado de coma. Essa pessoa não reconheceria Lucy… O visual é outro. A postura é outra. A música é outra. Lucy Alves está morta… Lucy morreu várias vezes e torcemos todos para que isso represente renascimentos… Talento ela tem de sobra! Esperamos que muitas vidas também…
* Jamarrí Nogueira é repórter da CBN João Pessoa e escreve sobre arte e cultura no Jornal da Paraíba aos domingos
Fonte: Jornal da Paraíba
Créditos: Jamarrí Nogueira