Ao atender a ligação do Estado, o músico e compositor de Brasília Rodrigo Freitas prepara-se para contar sua história com uma introdução intrigante: “Isso parece um filme de terror”. Rodrigo é mais conhecido como Kiko e o que ele vai narrar é a acusação mais grave que se pode fazer a um artista com relação à sua obra: a de que tal obra, na verdade, não lhe pertence.
O caso começa em 2002, por volta de 1h da manhã. Kiko chega de uma gravação no estúdio, abre a geladeira, pega uma cerveja e senta-se para assistir à TV. Passa pelo canal Multishow e vê Paula Lima cantando Tive Razão. Seria sua glória se a música, um suingue de altíssimo potencial pop, não estivesse registrada no nome de outra pessoa: Seu Jorge.
O primeiro instinto de Kiko foi matar alguém e o segundo, matar a si mesmo. Superadas as duas tentações, começou a querer entender o que houve e, aos poucos, descobrir o que diz serem as respostas. Segundo a acusação de Kiko, que somente há um mês foi parar na mesa de uma audiência na 5.ª Vara Cível do Fórum da Capital, no Rio de Janeiro – com Kiko e sua advogada Deborah Sztajnberg de um lado, Seu Jorge e seu advogado Paulo Cesar Pinheiro Filho de outro e a juíza Monica Quinderê no centro –, o cantor Jorge Mário da Silva apropriou-se indevidamente de não apenas uma, mas de seis músicas compostas pela dupla Rodrigo Freitas e Ricardo Garcia, também de Brasília.
Destas seis, quatro tiveram um peso decisivo na vida de Seu Jorge: Carolina, Tive Razão, Chega no Swing e Gafieira S.A. Segundo Kiko, duas outras feitas em parceria por ele e Ricardo, She Will e Não Tem, também estão no nome do cantor. “Ele não as usou ainda, mas pode gravá-las a qualquer momento”, diz Kiko.
Ricardo Garcia, hoje um designer gráfico que vive em Miami, conta a mesma história que seu parceiro. Ele havia concebido um projeto em 1999 chamado Gafieira S.A., um álbum que seria gravado em Brasília para depois render shows pelo País no formato bailes ao estilo samba-rock e gafieira. Depois de procurar Kiko para que ele produzisse o disco no Estúdio Blue Records, do próprio parceiro, Ricardo decidiu chamar Seu Jorge para participar do álbum como um dos cantores convidados. A ideia era ter também nomes como Ed Motta e Sandra de Sá. Depois de marcar com Jorge, Ricardo veio a São Paulo conhecê-lo nos bastidores do Free Jazz Festival de 1998, quando o cantor era ainda vocalista do grupo Farofa Carioca. Seu Jorge aceitou o convite, arrumou as malas e foi a Brasília.
No estúdio, sempre segundo a acusação, Seu Jorge tomou conhecimento das músicas. “Ele ficou por ali uma semana, mas o projeto não terminou e deu uma estacionada”, conta Kiko. Depois de três ou quatro meses, Ricardo trouxe Jorge novamente. Ainda sem o álbum finalizado, a segunda sessão de produção terminou, mas, antes de voltar ao Rio, Jorge pediu para levar uma cópia com as músicas gravadas. O projeto sofreu nova paralisação e, cerca de um ano e meio depois, Kiko chegou em casa, ligou a TV e viu Paula Lima cantando Tive Razão.
Kiko foi atrás e descobriu que não só Tive Razão como as outras que alega serem suas e de Ricardo também haviam sido registradas por Jorge na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro pouco tempo depois das pré-produções de Brasília. Decidiu então fazer o registro das mesmas em seu nome para provocar duplicidade e obrigar a Biblioteca Nacional a apurar a origem das autorias. Contratou advogados e diz ter todas as provas contundentes para afirmar que é o dono do patrimônio, como uma fita adat (analógica) gravada antes da chegada de Seu Jorge ao estúdio, além de testemunhas e notas fiscais que comprovam a contratação do cantor como convidado.
Seu Jorge foi procurado pela reportagem do Estado. Ele não aceitou falar por telefone, mas enviou um comunicado breve por intermédio de seus empresários, transcrito aqui em sua totalidade: “O caso está sendo julgado pelo Poder Judiciário, como o de tantos outros artistas de todas as vertentes, e estamos confiantes de que a justiça será feita. Temos o prazer de trazer ao seu conhecimento e ao público do veículo de comunicação para o qual você trabalha que Seu Jorge acaba de lançar mais um novo trabalho de sucesso chamado Músicas para Churrasco Vol. II, que gostaríamos de enviar para a sua redação aos seus cuidados. Cordialmente, Seu Jorge e Equipe”.
O lançamento do disco em São Paulo, o que Seu Jorge não disse, será amanhã, na casa de espetáculos Citibank Hall. O advogado que o defende nos tribunais, Paulo Cesar Pinheiro Filho, também foi procurado, mas não respondeu à ligação até o fechamento desta edição.
Quem era empresária de Seu Jorge à época do projeto em Brasília é Danusa Carvalho, afastada do músico há dez anos. Ela confirma que Jorge e Ricardo se conheceram no Free Jazz e que o cantor foi convidado para ir ao Distrito Federal não para cantar, mas, sim, produzir o álbum. “Fechamos que ele faria a produção e eu, o lançamento”, conta. E ainda que Jorge não teria recebido o cachê que lhe foi prometido, de R$ 5 mil. Kiko e Ricardo reafirmam que a participação de Jorge não era como produtor, mas como cantor. E que o valor do cachê não foi pago por causa da descoberta de que Jorge havia agido de má-fé.
Com relação à autoria das músicas, Danusa diz não saber. “Eu não estava lá. Sempre achei que elas tinham a linguagem do Farofa Carioca. Não posso dizer se são ou não do Seu Jorge, mas acho que ele tem agora que ser homem e resolver essa questão, que já leva tanto tempo. Há uma falta de caráter forte, de um lado ou de outro.”
A advogada de Kiko Freitas, Deborah Sztajnberg, afirma que só agora, depois de oito anos de processo, foi possível uma audiência porque o cantor não fornecia endereços corretos à Justiça. “Quando sentamos diante da juíza, a primeira coisa que pedi foi que ele informasse o endereço no Brasil. Ele fugiu por oito anos. A juíza fez então com que ele apresentasse seu endereço no ato. Foi constrangedor.” Ela conta que Carolina, por exemplo, um dos maiores sucessos lançados pelo cantor, foi feita originalmente por Ricardo para sua então namorada, de nome Carolina. O músico confirma.
Kiko Freitas alega, além de perdas materiais com os direitos autorais das músicas, danos morais. Diz que sofreu retaliações de músicos na época em que o processo começou e o caso rendeu as primeiras notícias. “As pessoas começaram a achar que eu queria me aproveitar do sucesso dele. Acabei fechando o estúdio.” Por sua contabilidade, as músicas das quais alega autoria já saíram em 48 compilações lançadas em vários países, além das que estão nos discos de Seu Jorge. A juíza pediu na audiência de maio que um perito analise a fita em que as músicas foram gravadas com suas respectivas datas. Elas podem ajudar a provar se a história de Kiko e Ricardo é mesmo um conto de terror.
Fonte: Estadão