A organização holandesa Women on Web anunciou no princípio do mês que enviará comprimidos de mifepristona e misoprostol (no Brasil vendido como Cytotec, medicamento para úlcera largamente utilizado como abortivo clandestinamente) a todas as mulheres contagiadas com zika que queiram abortar em países atingidos pelo vírus onde não é permitido por lei interromper a gravidez. A ONG já atua neste sentido, independentemente do mosquito. No Brasil, mais de mil mulheres escrevem para lá mensalmente pedindo que enviem os comprimidos para que possam abortar, mas, segundo a médica Rebecca Gomperts, criadora do site, os correios interceptam qualquer correspondência contendo abortivos. “Women on Web exorta o governo brasileiro e a Anvisa a suspender a interceptação de pacotes com medicamentos abortivos durante a duração da epidemia de zika”, pede a organização.
O blog pediu um parecer ao advogado Rodrigo Machado sobre possíveis sanções para quem recorre à Women on Web em busca dos comprimidos. “A prática é bastante controvertida em razão do artigo 273 do Código Penal, já que a norma criminaliza a importação de remédios sem as características exigidas para a sua comercialização. E a regulamentação vem, necessariamente, dos órgãos brasileiros. Em tempos de excessivo punitivismo, não dá para afirmar que as pessoas estão seguras quando escolhem participar dessa prática. Em relação às mulheres, o direito de decidir o que fazer com o seu próprio corpo não é verdadeiramente respeitado no Brasil. Uma das maiores incongruências do nosso Estado”, declarou Machado.
O misoprostol (princípio ativo do Cytotec) é considerado a forma mais segura de abortar, mais do que a curetagem, e é utilizado inclusive na rede pública nos casos de aborto legal ou quando o feto morre, mas continua retido no útero. Em outros países, como a França e o Reino Unido, onde o aborto é legalizado, o misoprostol é comercializado com esse fim nas farmácias. Em Cuba, o governo entrega o medicamento para a mulher e ela só retorna, após o abortamento, para avaliação médica. No Brasil, o que acaba por acontecer é que as mulheres que querem abortar procuram vendedores clandestinos e compram o remédio, muitas vezes falsificado, porque é vendido em comprimidos avulsos, fora da embalagem.
Em 2011, o Facebook bloqueou por alguns dias o perfil da médica Rebecca Gomperts por publicar o meme abaixo, onde ensina como abortar com segurança usando Cytotec, que só é vendido com receita médica. O que Rebecca envia pelo correio é uma combinação do misoprostol com mifepristona, chamada por ela de “m&m” (como o confeito de chocolate) e que, afirma, é ainda mais seguro. “Você toma a primeira pílula, que bloqueia o hormônio que permite que a gravidez prossiga. 24 horas depois, toma a segunda, o misoprostol, que produz contrações uterinas e permite expulsar o feto. Basicamente, a combinação destes comprimidos causa um aborto espontâneo”, assegura a cirurgiã.
O jornal chileno The Clinic entrevistou a médica sobre as razões pelas quais promove o aborto medicinal pelo mundo –antes de distribuir os medicamentos, Rebecca utilizava um navio, que parava nas águas continentais e fazia abortos em países onde não era permitido. “É um direito, porque as pessoas devem ter direito a proteger sua saúde e sua vida”, diz Gomperts, que também fala sob uma perspectiva de classe. “As mulheres casadas com ministros, doutores ou gente no poder podem ter um aborto quando queiram; podem viajar para fazer um aborto em outro país ou pagar milhares de dólares a um médico que as ajude em seu país. A lei cria injustiça social, o aborto ilegal cria injustiça social e as leis e as sociedades democráticas têm a obrigação de proteger os direitos de cada pessoa, de permitir acessos iguais a viver saudavelmente e a mesma oportunidade de permanecer vivas. Ou seja, a lei está violando o princípio de uma sociedade democrática.”
Leiam a entrevista, adaptei e traduzi para vocês.
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Por Mariana Arellano Goldsack, no The Clinic
Rebecca Gomperts é uma médica holandesa de 49 anos que se especializou em aborto cirúrgico, fez PhD em aborto medicinal, um master em Políticas Públicas na Universidade de Princeton e luta para que toda mulher seja livre para abortar quando decida.
Por isso, em 1999 fundou Women on Waves (Mulheres sobre Ondas), uma organização sem fins lucrativos que promove o aborto libre e que, como parte de suas campanhas, ofereceu durante 11 anos um serviço de aborto seguro “em domicílio”. Tratava-se de um barco que, convertido numa clínica móvel, navegava por diferentes países com profissionais de saúde e voluntários, entregando comprimidos abortivos –mifepristona e misoprostol– às mulheres que o requeriam e que eram ilegais em seus países. Como isto escapava da lei, o barco se instalava a 322 quilômetros da costa, onde começam as águas internacionais, um espaço onde as leis que regem são às do país ao qual pertence o navio. Neste caso era a Holanda, onde o aborto é permitido.
As mulheres eram transladadas em bote para fazer o aborto quando não tinham mais que seis semanas e meia de gravidez. Há 15 anos, instalou seu barco no Chile. Segundo lembra a médica, este foi “um dos primeiros países onde quis fazer uma campanha de aborto”. Lá se reuniu com varias organizações pró-aborto que já existiam na época. Em 2009, uma visita ao Brasil acabou cancelada.
A partir desta iniciativa, muitas mulheres ao redor do mundo contactaram o site por email pedindo que visitassem seus países para fazer um aborto seguro. Foi aí que Gomperts se deu conta de que era um problema mundial que não poderia resolver só com um barco.
Por isso decidiu criar Women on Web, um site de consultas e apoio onde todas as mulheres que queiram abortar podem encomendar estas pílulas e recebê-las pelo correio em troca de uma doação sugerida de 70 a 90 euros. Mas, se a mulher não tem meios para custear, os comprimidos são enviados gratuitamente.
Recorrem ao site milhares de mulheres que vêem nele uma solução para sua gravidez não desejada –seja por estupro, inviabilidade fetal, risco da mãe ou simplesmente por não querer ter o filho–, um número que triplicou nos países onde o vírus zika aparece, já que significa um sério risco para as grávidas por produzir microcefalia nas crianças que estão para nascer.
Há um tempo se debate no Chile sobre o aborto terapêutico em três casos: estupro, inviabilidade do feto e risco para a mãe. O que acha dessa discussão?
Olhando a história da legalização do aborto em diferentes países, o que aprendemos é que isto não vai ajudar a nenhuma mulher, só a algumas. E não resolverá o problema dos abortos ilegais. Só quando os abortos forem permitidos em todos os casos –quando as mulheres necessitam fazê-lo–, aí sim vai afetar à saúde e os direitos da mulher. Honestamente, acho um desperdício de energia só legalizá-lo nestes casos. Além do mais, no Brasil, por exemplo, onde é legal em caso de estupro, é muito difícil o acesso ao aborto. As mulheres têm que ir à polícia, onde são investigadas e humilhadas. Sem contar que, das mulheres que querem abortar, muito poucas o fazem por estas três razões. A única maneira de resolver realmente o problema é liberar totalmente o aborto, torná-lo disponível para todas as mulheres, e que ele seja feito dentro do atendimento básico. Isso é o que Women on Waves pretende conseguir, aconselhando aos governos que o incluam em suas políticas; as mulheres deveriam poder abortar na rede pública de saúde.
Por que você acha que o aborto é um direito?
Tenho um ponto de vista bem pragmático. Basicamente, toda gravidez é um risco para a saúde da mulher; na Holanda, 10 mil mulheres morrem dando à luz anualmente, e este número aumenta em outros países. Isto quer dizer que as mulheres são obrigadas a arriscar sua saúde para ter um bebê. Sobretudo se há risco para a mãe, o aborto medicinal é mais seguro do que continuar a gravidez. Elas têm maiores possibilidades de morrer quando dão à luz do que quando fazem um aborto medicinal. Creio que essa é a base fundamental: porque isto é um direito, porque as pessoas devem ter direito a proteger sua saúde e sua vida.
Por que você acha que o aborto é ilegal?
Há muitas teorias sobre isso. O que vemos em geral é que o corpo da mulher e sua reprodução são sempre ferramentas políticas, então o direito a abortar é restrito. A capacidade de se reproduzir sempre foi uma ferramenta política.
Por que você luta contra as leis de cada país?
Porque creio que há muitas leis injustificadas em muitos países, como as leis que permitem torturar gente, e creio que nós, como cidadãos, quando cremos na humanidade, nos direitos e na justiça social, é algo pelo que devemos lutar. E também sob a perspectiva de classes: as mulheres que não têm dinheiro nem acesso à informação e que são, desde o início, as pessoas mais vulneráveis da sociedade, são as mais afetadas por este tipo de leis. As mulheres casadas com ministros, doutores ou gente no poder podem ter um aborto quando queiram; podem viajar para fazer um aborto em outro país ou pagar milhares de dólares a um médico que as ajude em seu país. A lei cria injustiça social, o aborto ilegal cria injustiça social e as leis e as sociedades democráticas têm a obrigação de proteger os direitos de cada pessoa, de permitir acessos iguais a viver saudavelmente e a mesma oportunidade de permanecer vivas. Ou seja, a lei está violando o princípio de uma sociedade democrática.
Como surgiu seu interesse pelo aborto?
O que me interessa é a injustiça, e creio que no aborto ocorrem as injustiças sociais mais fundamentais. Para mim, tem a ver com o direito de autonomia e dignidade. Creio que estes valores são realmente importantes.
Você abortou alguma vez?
Eu abortei, como muitas outras mulheres. Também tive um aborto espontâneo, mas agora tenho dois filhos. Sou uma mulher muito normal, em minha vida reprodutiva experimentei tudo o que uma mulher pode experimentar, mas a razão de atuar nisso não é porque eu fiz um aborto.
Como surgiu a idéia de criar Women on Web?
Foi em resposta a todos os emails que estávamos recebendo depois da primeira campanha em barco que fizemos. As mulheres começaram a nos escrever: ‘Quando o barco estará por aqui? Necessito fazer um aborto’. Nos demos conta de que tínhamos de resolver o problema; daí o site. Achei fascinante que, depois disso, na América Latina se começou a produzir um forte movimento de resistência, muitos grupos de mulheres locais começaram a distribuir soluções abortivas. Claro que não se pode generalizar, porque cada país é muito diferente.
Quando as mulheres solicitam os comprimidos, você simplesmente confia que estão dizendo a verdade quanto às razões, condições e possíveis doenças que possam gerar contra-indicações nesta forma de abortar?
Sim, toda relação médico-paciente pressupõe confiança, não se pode trabalhar de outra maneira. Os pacientes estão aí por interesse próprio e pedem ajuda aos médicos dizendo-lhes quais são seus problemas. Se alguém tem uma infecção e quero lhe prescrever penicilina, por exemplo, pergunto se é alérgico à penicilina e me diz que não, mas em realidade, é, está agindo contra seus próprios interesses. Não é diferente com a gravidez.
Os comprimidos são entregues às mulheres sem importar a razão pela qual quer abortar?
Perguntamos a razão do aborto, mas basicamente sim. Cremos que a única pessoa que pode decidir se necessita fazer um aborto ou não é a própria mulher, porque ninguém mais vai dar à luz e ela é a única que será afetada por isso.
Vocês lançaram uma campanha solidária para as grávidas contagiadas com o vírus zika, entregando-lhes as pílulas para abortar de forma gratuita. Por que decidiram fazer isto?
O que notamos quando se soube que o zika produzia microcefalia nas crianças foi um incremento nas solicitações de aborto vindas dos países mais afetados pelo vírus. Aí nos demos conta de que há muitas, muitas mulheres que estão realmente assustadas e que estão buscando uma forma de abortar. Muitas delas fariam abortos inseguros e perigosos, porque o aborto é muito restrito em seus países, por isso anunciamos que as ajudaríamos de forma gratuita. De todas formas, Women on Web atualmente trabalha desta maneira: é uma organização sem fins lucrativos. Pedimos uma doação, mas há mulheres que não podem pagar pelos comprimidos. Uma gravidez não desejada é uma emergência médica, não se pode negar cuidados a esta mulher.
Segundo você, o aborto medicinal é a forma mais segura de abortar?
O British Journal of Obstetrics and Gynaecology diz que o aborto medicinal é sempre a melhor opção. Mas um aborto feito em um ambiente limpo por uma enfermeira ou médico capacitado também é muito seguro. O problema é que muitas mulheres querem esconder sua gravidez e, com os comprimidos, podem abortar elas mesmas, não necessitam um médico, só acesso a eles e saber como tomá-los.
Como funcionam estes comprimidos no corpo?
Há duas formas de fazer um aborto medicinal: a primeira, que é a melhor opção, é tomar as duas pílulas – uma é a mifepristona e a outra o misoprostol, as chamamos m&m. Você toma a primeira pílula, que bloqueia o hormônio que permite que a gravidez prossiga. 24 horas depois, toma a segunda, o misoprostol, que produz contrações uterinas e permite expulsar o feto. Basicamente, a combinação destes comprimidos causa um aborto espontâneo. A segunda forma é só tomar misoprostol, provocando só as contrações para expelir o feto, mas é menos eficiente.
Existem doenças que podem impedir a mulher de tomar a mifepristona e o misoprostol?
Muito poucas. As companhias farmacêuticas dizem que os comprimidos não podem ser ingeridos em caso de alergia a algum destes compostos, mas é extremamente raro, porque as alergias acontecem por doenças muito raras, como a porfíria.
Quais são os riscos deste método?
Os mesmos de um aborto espontâneo: 20% das gestações terminam em um aborto espontâneo. O risco ocorre quando você não tem suficientes contrações uterinas ou quando sangra demais. Aí é preciso ir a um hospital.
Fonte: Socialista Morena