Dos romances modernistas, passando pelo sucesso do forró nas rádios e chegando ao auge da TV como grande meio de comunicação, é possível afirmar que existiram construções, no imaginário brasileiro, sobre o Nordeste. Essa discussão está bem sintetizada no livro A invenção do Nordeste e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque Jr. Com auxílio das redes sociais, os estereótipos em torno da região se tornaram alvos constante de críticas, até que um fenômeno recente expôs a fragilidade do dualismo dessa discussão: a paraibana Juliette Freire, vencedora do Big Brother Brasil 21.
Natural de Campina Grande e residente de João Pessoa, a advogada e maquiadora se tornou um fenômeno com uma estratégia de marketing que ressaltou o chapéu de couro, o cacto (que virou o nome dos seus fãs) e mais símbolos anteriormente acusados de enquadrar o Nordeste e os seus habitantes em um imaginário limitado. Após o fim da edição do reality, a aparição de Juliette no Domingão do Faustão usando um chapéu de cangaceiro como uma espécie de coroa reforçou a polêmica. Quantos nordestinos realmente usam esse adereço? Juliette estaria empoderando os nordestinos ou reforçando estereótipos históricos?
“O caráter do estereótipo é uma estratégia de comunicação antes de qualquer coisa. Ele integra o que podemos chamar de marcas discursivas dos clichês e pode brincar com interações entre identidades regionais e a mídia. É algo que tem muita adesão pela simplicidade no discurso e na performance. Isso é bastante comum e usual na relação midiática”, explica Thiago Soares, professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE.
“No caso de Juliette, o chapéu de couro e o cacto foram evocados como traços de localidade. Vimos muitas pessoas incomodadas, pois vivemos uma fase de reeducação sobre o que é a complexidade da identidade nordestina. Ao mesmo tempo em que isso reduz, pois o Nordeste não é só isso, também potencializa a comunicação, pois evoca uma ideia de tradição. Eu acho que esse debate evocou as ambiguidades dos estereótipos. Juliette está usando, na verdade, estratégias de disputas simbólicas do Nordeste no ambiente midiático. Nós estamos evocando identidades o tempo todo, sejam raciais ou regionais”, comenta Soares.
A designer e pesquisadora pela UFPE Jaíne Cintra realizou uma dissertação de mestrado sobre a representação do Nordeste nas aberturas de telenovelas da Globo no período da redemocratização. “Eu observei que as aberturas traziam, em um momento em que a TV era soberana, efeitos e narrativas com representações que ajudaram a reforçar esse imaginário cultural. Imagens e técnicas são práticas culturais. O design usou um discurso muito sedutor, que envolvia os telespectadores pela técnica e pelo som”, diz.
Jaíne comenta que Juliette se tornou um fenômeno, em parte, justamente por esse tipo de exploração visual trabalhada pelo design. “A minha pesquisa mostrou que, ao ganharmos mais liberdade, podemos reforçar o que já tínhamos. Vemos isso sendo muito bem explorado nesse caso, pois essa percepção existe no imaginário coletivo. Não apenas pelos sulistas, mas por nós mesmos. Nós reproduzimos esses simulacros o tempo todo. Ao falar sobre o Nordeste, lidamos com um conjunto de imagens e enredos construídos historicamente. É muito difícil fugir dessa conformação visual. Juliette e sua equipe sabiam que ao colocar um emoji de cacto estavam levando a luta de um povo. O povo da seca. Tornou-se um ícone de uma região, de um sentimento, de pessoas batalhadoras.”
Já sobre a performance da paraibana durante o programa, Thiago Soares comenta que foi construída uma ideia de “resiliência” que, no conjunto do que estava ocorrendo dentro e fora da casa, acabou também demonstrando ideias do que é ser nordestino. “Euclides da Cunha, em Os Sertões, escreveu a famosa frase: ‘o sertanejo é, antes de tudo, um forte’. Juliette ganhou muita adesão por uma série de ataques ao identitarismo dela. Ela usou bem esse papel que foi dado a ela, de vítima após ataques que vinham de uma ideia da menina nordestina ingênua, uma estereotipagem caipira. Ela usou tudo isso para legitimar uma resiliência. O sotaque, o chapéu, o forró, a aproximação de Chico César, tudo vai marcando um certo conjunto do que é ser nordestino.”
Com quase 29 milhões de seguidores no Instagram e um engajamento que concorre com celebridades internacionais, Juliette Freire é o rosto mais desejado pelas marcas do Brasil hoje. Ao evocar símbolos e códigos com séculos de significados para o contexto das redes, a jovem provou como o regionalismo ainda tem força. É como uma “reinvenção do Nordeste”, em um contexto social e econômico guiado por algoritmos e neoliberalismo.
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Fonte: Diário de Pernambuco
Créditos: Diário de Pernambuco