foi por acaso?

FIM DE NOVELA: o mal real em 'A dona do pedaço' - Por Arnaldo Bloch

FIM DE NOVELA: o mal real em 'A dona do pedaço', dramaturgia mostra que bom caminho artístico nem sempre coincide com o bom caminho humano

Em intervalos bissextos, escrevo sobre novelas. É quando me vem, do folhetim, algo fundamental, maior. “O bem amado”, “Gabriela”, “O grito”, “Vale tudo”, “A indomada”, “Avenida Brasil” e até “Araponga” e “Zazá”, por diferentes motivos, marcaram minha vida de espectador, da mesma maneira que filmes, músicas, peças, quadros.

Depois de algum tempo sem me interessar por nenhuma novela, passei a assistir à trama de Walcyr Carrasco quase por acaso, um mês e meio atrás, quando fiquei na casa de minha mãe em repouso pós-cirúrgico.

Já de volta ao lar, desanimei. Do jeito que ia, a história fecharia a tampa com uns oito casamentos; duas regenerações evangélicas e uma ordenação em convento (envolvendo as vilãs); a morte do maior vilão; cinturões de boxe em série; uma fuga feliz para a ilha secreta dos sonhos; uma viagem glamorosa para Los Angeles; e os idosos com suas vidas arrumadinhas.

Tudo terminaria doce para todos, como um bolo da Maria da Paz.

Quando vi que Josiane, terrível assassina, estava mesmo a ponto de se tornar um ser santo tosado com sorriso de passarinho em voo missionário (que atriz!), fiquei bolado. Nas redes sociais, o pessoal embarcava em teorias da conspiração: que a novela se converteu e o autor estava obcecado por pregar a palavra.

Com meus botões (do controle remoto), pensei: “Não. Alguma azeitona deve ter nesse bolo, alguma cereja há de emergir da empada”. Ou, como diria Caetano, alguma coisa está fora da nova ordem.

De tão preocupado, talvez eu não tenha visto os sinais que, como disse, mais tarde, Sílvia Buarque no Instagram, estavam na cara da Josiane. Precisei ir até o finalzinho, até a cena do viaduto — dirigida e filmada magistralmente, aliás — para testemunhar a vingança do autor. O pulo do gato da pena sobre o papel. O golpe de mestre. O momento em que o criador, na arte, assume, mesmo, a função de um deus.

Foi chocante ver o Gianecchini ser jogado lá do alto, mas o bom caminho artístico nem sempre coincide com o bom caminho humano. Uns hão de dizer que a moça esteve mesmo no rumo certo, mas que o demo, esse eterno e cômodo doador de álibis, a possuiu naquele instante.

Mas não. O “torna-te quem tu és” nietzschiano sempre intervém no frigir dos ovos, para o bem ou para o mal, no caso, o mal. A “fera verdadeira” (jaguaretê) do tupi-guarani não admite imposturas. Transformada no que é, Josiane se despe da fantasia de um “bem” abstrato, unilateral, divino, escudo animista da hipocrisia. O destino de Fabiana, que larga o convento para servir à morte e à grana, segue a mesma lógica.

Mas quando começa a trombetear a soldadesca a serviço dos céus, de uma força acima de tudo e de todos, é hora de prestar atenção quando for subir o viaduto.

 

Fonte: O Globo
Créditos: Arnaldo Bloch