A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que ocorram, anualmente, 22 milhões de abortos inseguros, resultando em 47 mil mortes
A discussão em torno do aborto em casos de microcefalia, não somente levantada no Brasil, mas em diversos países da América, trouxe consigo uma palavra forte: eugenia. Termo popularizado devido ao regime nazista, que justificava atrocidades com o desejo obter gerações de alemães “sem defeitos”, a eugenia é o argumento utilizado em críticas de grupos contrários ao aborto, que alegam que a interrupção de gravidez em caso de microcefalia visaria a criação de crianças “perfeitas”, excluindo pessoas com deficiência.
Há duas semanas, em entrevista ao Correio, a antropóloga Débora Diniz, pesquisadora do Anis — Instituto de Bioética, afirmou que a referência à eugenia é “um ato de má-fé”, já que isso seria uma política de um estado totalitário e não a ampliação das possibilidades de escolha de cada mulher. A Anis pretende apresentar ao Supremo Tribunal Federal, nos próximos meses, ação solicitando a permissão do aborto nos casos de microcefalia, entre outras garantias para as mulheres. No último sábado, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, defendeu a interrupção da gravidez de fetos diagnosticados com microcefalia. “Acho que essa rigidez sobre o aborto tem que ser revista”, disse, em Rio Branco (AC), durante o mutirão nacional organizado pelo governo federal.
Dom Leonardo Steiner, bispo auxiliar de Brasília e secretário-geral da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), classifica como “lamentável” que a proposta seja levada durante o atual momento de comoção e receio à epidemia de zika. “Eugenia quer dizer ‘bem-nascido’. Teríamos uma seleção, entre seres humanos, daqueles que devem ou merecem viver, ou que não devem viver ou não merecem. Seria ‘bem-nascida’ a criança sem alguma deficiência. Com isso, não estaríamos ofendendo as famílias que, movidas por amor e responsabilidade, acolhem crianças portadoras de algum tipo de limitação?”, questiona o Bispo, que assume que a pressão pela permissão do aborto é reflexo de uma cultura “hedonista e pragmática” dominante. “Hoje é a microcefalia, amanhã serão outros motivos. Estaremos sempre na fuga de assumir a finitude humana”, critica.
“Os nazistas tentaram fazer uma raça ‘purificada’, em que uma pessoa que tivesse qualquer característica considerada como defeito seria eliminada. Era uma ‘limpeza étnica’: queriam exterminar judeus, negros, homossexuais, ciganos”, explica Volnei Garrafa, coordenador do programa de pós-graduação em Bioética da Universidade de Brasília e integrante do Comitê Internacional de Bioética da Unesco. O pesquisador conta que há uma forma de seleção genética considerada positiva, como em casos de hemofilia. “Sou favorável à possibilidade da interrupção da gravidez, não só no caso específico da microcefalia. O tabu em torno do tema é muito latino-americano, devido a questões religiosas”.
Garrafa defende a posição em três eixos: sanitário, moral e econômico. “O problema do Aedes aegypti, zika e microcefalia é o problema sanitário mais sério do mundo hoje. É uma vergonha termos 50% da população sem saneamento básico. É criminoso. Em segundo lugar, há a autonomia da mulher. Temos um Estado muito paternalista, atrasado. A discussão de se o feto é pessoa ou não vai chegar jamais a uma conclusão”, observa.
Ao ver do pesquisador José Roberto Goldim, chefe do serviço de bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a interrupção da gravidez diante do diagnóstico de microcefalia seria, de fato, uma medida eugênica. “Não é selecionar quem seria maior ou mais bonito, mas selecionar os embriões mais viáveis, por exemplo, não deixa de ser eugenia. Considero a discussão do aborto a mais delicada de todas”, alerta.
Goldim se preocupa, ainda, com o tempo em que o aborto pode ser permitido. Na maioria dos países, a interrupção é permitida de 12 a 20 semanas. No entanto, o diagnóstico mais acurado da microcefalia só ocorre em torno da 28º semana de gestação, alega o especialista em bioética, com confirmação somente depois do parto. No Brasil, 462 crianças tiveram diagnóstico confirmado da condição após o nascimento, frente a 765 casos descartados e 3.852 em investigação.
Ilegalidade
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que ocorram, anualmente, 22 milhões de abortos inseguros, resultando em 47 mil mortes e 5 milhões de casos de complicações que chegam aos hospitais.
Com base em levantamento da ONU, feito em 196 países, a OMS informou que metade dos países libera em casos de deficiências, com restrições que envolvem o tipo de malformação e se impedem a vida ou a vida independente; 35% oferecem a possibilidade com base nas condições socioeconômicas da gestante e em 30% o aborto pode ser feito sob demanda da mulher. O sanitarista Gastão Wagner de Sousa Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva , favorável à descriminalização do aborto, elenca como importante o direito reprodutivo de escolher engravidar e ter uma gestação saudável, sem riscos de contaminação. “A epidemia é um evento controlável e um casal não tem que pagar pela desorganização do Estado”.
Fonte: Diário de Pernambuco
Créditos: Diário de Pernambuco