Para confirmar que mais de 1.500 páginas de textos machadianos eram mesmo do autor, a professora da Unesp e pesquisadora Silvia Azevedo precisou de três décadas de paciência, uma investigação rigorosa das obras que Machado assinou na mesma época e sobretudo coragem para fazer afirmação tão ousada.
Investigação atrás da autoria
Em 1987, Azevedo iniciou um doutorado em teoria literária na USP, e propôs uma investigação sobre a formação de Machado de Assis como escritor de contos. “Comecei lendo os textos do Jornal das Famílias que se encontram na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Naquela época, por falta de tecnologia, o material ainda nem estava microfilmado e muito menos digitalizado. Me custou muito fazer a consulta nos originais daqueles tempos, mas isso seria impossível hoje”, conta a pesquisadora.
Na década de 1990, Azevedo seguiu investigando a contribuição de Machado de Assis para a imprensa carioca do século 19. Foi quando entrou em contato com os textos da Semana Ilustrada e, intrigada com a semelhança ao estilo machadiano de escrita, passou a buscar elementos internos e externos aos textos que comprovassem a autoria.
O resultado da pesquisa é um livro de dois tomos, com mais de 700 páginas cada, em pré-venda a partir de segunda-feira (30). “Badaladas – Dr. Semana” contou também com a supervisão do professor da Universidade de São Paulo e editor da Nankin, Valentim Facioli. Em conversa com o TAB, o especialista contou que acabou lendo mais de 10 mil páginas de Machado de Assis para editar a obra organizada por Silvia Azevedo. Trabalho simultaneamente ingrato e muito grato, já que a descoberta é um verdadeiro tesouro para estudiosos e para o público.
Onze anos antes de publicar “O Alienista”, um de seus romances mais populares, Machado de Assis publicou este fragmento como Dr. Semana:
“Rio, 12 de junho de 1870
Não é Catilina que nos bate às portas; é pior do que isso.
Aposto um frasco das pílulas de Kemp, contra uma garrafa de salsaparrilha de Bristol, em como nenhum dos meus leitores adivinha o grave acontecimento desta cidade.
Os jornais estão calados; na rua do Ouvidor só se fala da Patti e das interpelações, das festas oficiais e da emancipação. No importante ninguém cuida; o que é realmente grave escapa às nossas atenções; o perigo, não iminente, mas existente, é coisa de nonada para o nosso espírito.
Serei eu o denunciador do mal; serei o exortador do remédio.
O mal é este:
No hospício de Pedro II já não há lugar para doidos.
Quem nos conta isto é o próprio ministro da guerra, na resposta que deu ao presidente do Ceará, que lhe pediu um lugar para um major reformado. O ministro respondeu: ‘Não pode ser recebido no hospício por não haver lugar’.
O edifício é vastíssimo e foi construído há poucos anos; não obstante, está abarrotado de moradores. Se continuarmos assim, não tarda que a maioria das casas sirvam só para os alienados, ficando os homens de juízo (insignificante maioria) alojados em um bairro ou dois.”
Na coletânea, Silvia Azevedo explica como Machado de Assis, disfarçado de Dr. Semana, dava mostras de estar informado sobre as irregularidades de D. Pedro 2º. O fato de o vasto edifício estar “abarrotado de moradores”, motivo da crítica à competência dos médicos em diagnosticar as convenções e os limites da loucura, pode ter sido uma das ideias que deram origem a “O Alienista”.
Machado era “isentão”?
Investigando citações recorrentes, escritos atribuídos oficialmente a Machado de Assis, as referências históricas e referências à própria biografia do autor, Silvia Azevedo esquematiza no livro de contos inéditos a forma como conseguiu levantar as provas que endossam a autoria de cada Badalada. “Foi uma pesquisa que começou em 1986 e agora, aqui estamos. Nas Badaladas está o Machado do futuro: em 1876, quando ele publica as últimas badaladas, já tem uma trajetória respeitável de crítico literário, teatral e censor do Conservatório Dramático Brasileiro. Fora isso, já tinha cinco livros publicados, sendo dois de contos”, explica a pesquisadora.
Durante um tempo, Machado de Assis foi acusado de ser um absenteísta (o “isentão” daqueles tempos) por não dizer abertamente o que pensava de temas espinhosos como escravidão, por exemplo. “Percorrendo as Badaladas, vemos que ele não teve um posicionamento engajado, mas, com a pena da ironia, falou muito sobre a política da época, não deixando de fazer críticas contundentes aos acontecimentos do seu tempo”, conta Azevedo.
Além da oportunidade de fazer críticas afiadas sem colocar seu prestígio em risco e de ganhar experiência jornalística, outro motivo para que Machado tenha escrito as Badaladas anonimamente por sete anos pode ter sido o salário extra. Noivo de Carolina Augusta de Novais, em 1869 o imortal penava para ganhar dinheiro e estabelecer seu futuro lar, igual a todos nós, mortais.
Em uma carta também reproduzida no livro, dirigida ao amigo Francisco Ramos Paz em 1º de maio de 1869, o autor dava sinais de que passava por sérios apuros financeiros:
“1º de maio
Paz.
Procurei-te ontem e anteontem em casa, e não te achei. Hoje, se te não encontrar, deixarei esta carta, pedindo-te que me esperes amanhã? de manha? para conversarmos sobre aquilo. Sei que tens andado ocupado e temo importunar-te com estes pedidos; mas, como te disse, não tenho outro recurso, e desejava concluir o negócio o mais cedo que fosse possível. Não insisto sobre a importância capital do serviço que me estás prestando; tu bem o compreendes, e sabes além disso qual e? a minha situação. Não pude arranjar a coisa sá por mim; vê se consegues isso, e repara que os dias estão correndo.
Ajuda-me, Paz; eu não tenho ninguém que o faça. Conselhos, sim; serviços, nada. Espera-me amanha?, domingo; irei às dez horas e meia, para te dar tempo de concluir o sono que, por ser domingo, creio que irá até mais tarde.
Teu
Machado de Assis.
“Para alguém sempre tão discreto com sua vida particular, só uma situação de grande necessidade justificaria a insistência com que Machado procurou Ramos Paz”, afirma Azevedo.
E a Capitu: traiu ou não traiu?
No timing perfeito para o lançamento das obras inéditas do autor, centenas de usuários do Twitter passaram os últimos dias discutindo o maior mistério do livro “Dom Casmurro”: Capitu traiu ou não traiu Bentinho?
Não temos a resposta definitiva para essa pergunta. Curioso que a polêmica nunca sai de moda — e ganhou novos contornos com este comentário feito pelo Youtuber Leon Martins:
Fiz um semestre de Machado de Assis na especialização. Conclusão: o ponto não é se Capitu traiu o Bentinho (provavelmente traiu). Dom Casmurro é, na verdade, a história de como uma mulher (e o mundo) transformaram um homem bom (Bentinho) em um homem armagurado (Dom Casmurro).
— Leon Martins (@CdNLeon) September 13, 2019
Na opinião de Azevedo, quem concordou com Leon Martins acabou caindo na cilada que o narrador machadiano tenta pregar nos leitores. “Bentinho é o protagonista, o narrador e o autor do livro. Ele acumula muitas funções e, portanto, pode manipular o leitor por todos os lados. Fora isso, sendo um advogado, Bentinho teria condição de engendrar todas as provas contra a esposa a seu favor. Dentro do romance, a Capitu não pode se defender, então nenhum julgamento desse tipo poderia ser justo”, resume.
Para a pesquisadora, o grande dilema do livro não é a existência ou a inexistência de uma traição, mas a dúvida se podemos ou não confiar no narrador machadiano. A magia de “Dom Casmurro”, para ela, está toda nessa incógnita.
Por falar em confiança, Azevedo está feliz e confiante em suas recentes descobertas, tão importantes para o nosso cenário literário — especialmente em um momento em que a literatura e a pesquisa brasileiras andam tão desaplaudidas. Não se pode ter tudo, mas temos 1.500 novas páginas de Machado de Assis em nossa história. Em ocasiões assim, talvez caiba mesmo uma comemoração.
BADALADAS – Dr. Semana
Organização: Silvia Azevedo
Edição: Valentim Facioli (Editora Nankin)
Preço: R$ 248 (pré-venda a partir de 30/9)
Fonte: UOL
Créditos: Luiza Sahd