Os amores, questões e vivências dos LGBTs sempre alimentaram a música brasileira, muito antes do movimento se consolidar e estar presente nas ruas. O orgulho LGBT, a trajetória de luta e os novos desafios que a comunidade enfrenta hoje no Brasil são tema da última edição do TAB. Mas na época em que o tema só aparecia em marchinhas jocosas e trocadilhos preconceituosos, Noel Rosa já se inspirava na travesti Madame Satã para compor “Mulato Bamba”, e Jackson do Pandeiro imaginava sua própria esposa trocando de sexo em “A Mulher que Virou Homem”.
Era uma visão um tanto ordinária, que parecia mais falar de seres folclóricos, mas que aos poucos foi dando espaço a um relato sensível na mão de grandes compositores. Chico Buarque é o maior deles, ao cantar com lirismo o romance entre duas mulheres (“Bárbara”, “Mar e Lua”) ou com ironia na saga de uma travesti que salvava o mundo no fim do dia, mas era sistematicamente odiada pela população (“Geni e o Zepelim”).
Há canções que sequer foram escritas com a intenção, mas passaram a ser adotadas como hinos da diversidade. “Preconceito”, bolero defendido por Nora Ney, sobreviveu aos anos 1950 graças a uma geração que projetava suas privações no verso: “Existe um preconceito muito forte / separando você de mim”. “Paula e Bebeto”, de Milton Nascimento, e “Toda Forma de Amor”, de Lulu Santos, ressoam até hoje como odes aos muitos tipos de amor.
“Mesmo que Seja Eu”, com Marina Lima cantando no refrão que o homem certo era ela, veio de encontro neste mesmo imaginário, ainda que ela tenha tantas outras canções mais diretas, como “Não Estou Bem Certa” e “Anna Bella”.
Caetano Veloso, João Bosco, Erasmo Carlos também escreveram sobre, mas foram os cantores mais populares dos anos 1970 que ousavam ser mais diretos. Wando e Odair José fizeram uma defesa apaixonada da relação entre dois homens – e isso em plena ditadura militar.
Mas poucos artistas LGBTs colocavam a cara a tapa. Nessa época, em que os gays eram chamados de “entendido”, o baiano Edy Star chutou a porta do armário com uma bota plataforma, o rosto maquiado, cantando um rock: “Chega de brincadeira / já estamos bem entendidos / concubinados, convencidos / Que para um bom entendido / Meia cantada basta”. Mais tarde, Ronaldo Resedá coroava a era disco – uma fase em que o desbunde e a liberdade sexual estavam em alta.
Amiga da fina nata da MPB, a cantora Tuca não entrou para a história, apesar de ter sido pioneira ao rascunhar sua vivência como lésbica em gravações pouco conhecidas. Morreu no esquecimento. Angela Ro Rô, Ana Carolina e Leci Brandão tiveram mais êxitos e fãs.
Só depois os próprios artistas LGBTs passaram a cantar suas próprias canções de forma mais aberta. Cazuza confrontava valores conservadores, enquanto Renato Russo levava a questão ao rock com “Meninos e Meninas”. Anos depois, gravava um disco em homenagem ao Stonewall, bar em Nova York cuja rebelião há exatos 50 anos deu origem ao movimento.
A chegada do Cansei de Ser Sexy e Banda Uó (com a transexual Candy Mel) moldou a cara de uma música pop, alegre e livre. Com o microfone tomado por direito, deu-se início a uma fase das mais criativas do pop brasileiros – seja com a chegada das drag queens Pabllo Vittar e Gloria Groove emplacando hits fora dos nichos ou com Maria Beraldo, Liniker e os Caramelows e As Bahias e a Cozinha Mineira propondo novas leituras na MPB.
No rap, Rico Dalasamrimou desejos e preconceitos, abrindo os caminhos para o coletivo Quebrada Queer e até mesmo para Criolo fazer uma ode dançante em “Etérea”: “Mas se tem um jeito esse meu jeito de amar / Quem lhe dá o direito de vir me calar?”
Linn da Quebrada desafia o funk com as rimas brabas e irônicas das dores e as delícias de ser, sim, uma travesti. Finalmente, no século 21, nasce um repertório forte e próprio: nossos próprios hinos gays.
Fonte: TAB
Créditos: Tiago Dias