No centro de São Paulo, um homem com uma grande cicatriz na testa, ainda com os pontos, pede R$ 2. “Não é para comida, não. É para sustentar meu vício”, anunciava sua sinceridade. A bebida desejada tem vários nomes (comerciais ou não): barrigudinha, barrilzinho, Corote, Caninha da Roça… Destilados adoçados em garrafas bojudas de 500 ml são comumente avistados nas mãos de outras pessoas em situação de rua.
A alta graduação alcoólica (39%) embriaga rapidamente e nos últimos anos esse tipo de bebida tem passado para outras mãos jovens e se tornam mais visíveis em época de Carnaval. A aguardente (ou vodca) adoçada tem sido usada por menores de idade que aproveitam a festa durante o dia, de graça e com pouca fiscalização. Eles preferem pelas versões similares das marcas que produzem o coquetel alcoólico em sabores que variam de açaí a pêssego — o que diminui a quantidade de álcool (13,5%) na bebida de cores vibrantes.
Apesar de a venda para menores ser proibida por lei, a estudante Carla*, 16 anos, assume beber escondida dos pais e revela não encontrar dificuldades para comprar.
“É um atrativo por ser mais em conta e porque muitos adolescentes querem se aventurar com coisas mais fortes. Eu nunca exagerei, mas tenho amigas que já exageraram. É uma bebida muito forte, principalmente a sem sabor. Não tenho medo porque sempre sei o meu limite. Quando percebo que bebi em excesso, paro”, diz Carla.
Quando não encontra a versão saborizada, Carla compra a sem sabor e com graduação alcoólica mais alta para misturar em outras bebidas.
Se antes o produto estava restrito a bares e armazéns mais simples ao preço de R$ 1,50 a R$ 3, há cerca de três anos é possível encontrá-lo até por mais que o dobro em regiões com aglomeração de jovens.
“Próximo à USP está R$ 7. Na região central da cidade, onde trabalho, custa R$ 2”, comenta a assistente Alessandra Marques, 21, que cursa o sexto período de Letras na USP (Universidade de São Paulo) e costuma frequentar os bares da região esporadicamente para consumir a versão com sabor da bebida.
“Eu bebo mais com minhas amigas da faculdade. Uma garrafinha já é o suficiente pra me deixar bem desorientada. É poder ficar bêbada bem rápido e sem gastar muito. Fazer um rolê legal e de baixo custo.”
Doce, barato e chapado
Já para o operador de telemarketing Matheus da Silva, 23, além do preço, o sabor é um diferencial dos pequenos barris. “Às vezes bebemos o puro e fazemos drinques. Outras bebidas mais baratas são mais ruins em sabor, e essa não”, comenta.
Alessandra, que opta apenas pelas versões saborizadas, concorda que algo agradável ao paladar é um diferencial. “Uma bebida doce não tem aquela dor para beber, que você ingere mesmo reclamando que é ruim. Os barris são bem gostosinhos de beber e deixam bêbados rapidinho”, diz ela.
Doutora em psicologia social pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que atende em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do mesmo estado, Helen Barbosa dos Santos aponta que, com base em seus atendimentos, as bebidas mais consumidas são a cerveja e aguardente ou vodca adoçada.
“Bebidas de baixo valor monetário sempre foram a saída para quem não possui renda própria, como os moradores de rua e os adolescentes. Com cores flamejantes e o gosto doce, esse bebida tem um apelo quase infantil. A união de algo da nostalgia da infância (as cores e os sabores artificiais) com o fato de se sentirem um ‘todo poderoso’ é a fórmula perfeita para conquistar esse público”, explica Santos.
Para ela, o que reforça a situação é a negação dessa realidade. “Há um acesso facilitado. E, inclusive, é um mercado em ascensão. Essa é uma dor de cabeça que ultrapassa qualquer ressaca, pois nos exige ir além dos moralismos implicados e pensar em como o Estado protege seus cidadãos de produtos que podem ser tóxicos à vida. A questão não é apenas regular, mas informar, dialogar sobre os riscos envolvidos, para além do divertimento que a droga produz”, afirma.
Para Jurandir Marcelino Ferreira Neto, psiquiatra especialista em álcool e drogas e que faz atendimentos há quatro anos no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) em Itaquera, na zona leste de São Paulo, as bebidas doces têm um risco ainda maior em comparação às outras.
“São mais sedutoras, principalmente ao paladar dos jovens. Se existe um quadro de dependência em relação ao álcool é um perigo grande, porque tende a aumentar o consumo”, explica ele.
O especialista afirma que na maioria dos atendimentos que faz aos jovens de 18 a 25 anos que enfrentam vícios, existe a prevalência do uso da bebida conhecida como barrilzinho no sexo feminino. “Elas bebem puro. Porque é uma população de alto grau de vulnerabilidade, e essa bebida é a mais barata. Já entre os homens, os tipos de bebidas variam”, comenta.
Em São Paulo, 7,7% dos usuários de álcool foram considerados de risco e 2,3% com uso nocivo ou provável dependência. Entre elas, as bebidas destiladas são as preferidas, de acordo com a última edição do estudo ISA Capital 2015, realizado pela Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, que apresenta as prevalências dos padrões de consumo de álcool no município de São Paulo em pessoas a partir de 12 anos.
O levantamento ouviu 4.043 pessoas no município de São Paulo (21,2% entre 12 e 19 anos, 53,6% entre 20 e 59 anos e 25,2% com 60 anos ou mais). Dos adolescentes ouvidos (12 -19 anos), 1,6% foi classificado como usuário de risco e 0,8% como em uso nocivo/dependência.
O estudo usou como metodologia** uma escala de pontuação de 0 a 40 pontos, medindo o grau de risco do uso de álcool, com perguntas como a quantidade de álcool ingerida no mês e até se o consumo impediu o indivíduo de cumprir obrigações ou se tornou incapaz de lembrar de acontecimentos.
De acordo com Ferreira Neto, a idade média para começar a beber entre os seus pacientes é de 14 anos, e com dez anos de uso abusivo, é possível perceber prejuízos à saúde.
“Temos o caso de um homem que começou com essa idade. Hoje, com 32 anos, ele apresenta dificuldade para andar e prejuízos cognitivos, não consegue tomar medicações sozinho ou aprender novos caminhos, como vir até o CAPS”, alerta o especialista.
Beber para esquecer e seus riscos
O psiquiatra explica que o álcool dificulta a irrigação das fibras neurológicas e pode degenerar esses tecidos cerebrais no longo prazo. “Até um certo ponto pode haver uma melhora, mas os principais prejuízos são os de memória”, diz.
Entre os seus atendimentos, ele revela serem comuns casos de homens que abusam de mulheres que fizeram uso excessivo de álcool. “Tivemos um caso de uma paciente de 24 anos. Ela estava num grupo e ficou muito alcoolizada bebendo barrilzinho. Quando acordou, sentiu que tinha sido abusada com penetração e presença de sêmen dentro dela. Ela preferiu não denunciar pela vergonha e com medo de ser humilhada.”
Ferreira Neto revela um quadro ainda mais grave, vivenciado em seus atendimentos. “Das mulheres que atendemos no serviço, e que são muitas, até hoje nenhuma fez a denúncia por ter sido abusada. Já existe o preconceito para quem é usuário, e isso ainda reforça a visão machista de que a mulher é a culpada final pelo abuso. Das minhas pacientes, todas passaram por algum tipo de abuso quando alcoolizadas.”
Os efeitos do álcool, ainda que consumidos em mesma quantidade por homens e mulheres, são mais nocivos ao corpo feminino. “A diferença está na quantidade de água. Entre 55% e 65% do corpo masculino é água, enquanto esse número varia entre 45% e 55% nas mulheres. A maior quantidade de água faz com que o álcool se dilua mais facilmente nos homens. Por isso, mesmo se os dois tiverem o mesmo peso, o homem será mais resistente aos efeitos do álcool”, explica o cirurgião Elcio Pires Junior.
A assistente Alessandra Marques, 21, comenta que nunca sofreu abuso ou assédio por estar alcoolizada, mas se assustou ao perder as lembranças do que aconteceu em uma festa corporativa.
“Só ía ter cerveja na festa, e eu não gosto. Resolvi beber com um amigo antes da festa, e compramos três minibarris, um para cada e o terceiro, dividimos. Me deu um apagão de 90%. De algumas coisas da festa eu lembro, mas sem exatidão. Nunca acreditei nas pessoas que falavam que esqueceram tudo depois de beber, mas depois dessa festa eu passei a acreditar”, comenta Marques.
O quadro vivido por Alessandra é chamado de amnésia alcoólica, e acontece geralmente após o grande consumo de bebidas.
“A amnésia alcoólica pode acometer cerca de 40% das pessoas, de acordo com a suscetibilidade. Algumas áreas cerebrais na presença do álcool passam a ter uma função mais debilitada durante aquele momento, passando por uma espécie de anestesia. Determinadas funções cerebrais, como construção de movimentos, cognição e memória podem ser afetados. As pessoas até têm o registro da memória, mas geralmente depois de dormir algum tempo, a lembrança já não está mais tão viva. Alguns lembram vagamente e outros não lembram absolutamente nada”, explica Mauro Paiva, psicólogo clínico e hospitalar, doutor em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Quem também já passou pela mesma situação há dois anos foi o operador de telemarketing Matheus Silva, 23, que misturou diversas bebidas destiladas em uma festa open bar (em que a bebida é servida livremente sem custo adicional, após o pagamento da entrada). “Só lembro do que fiz porque no dia gravei vários vídeos”, comenta Silva.
Assim como Alessandra Marques, que sempre bebe com amigos em quem confia, Silva também só consome álcool acompanhado. “Sempre ando em bonde [grupo], para evitar situações assim. Um protege o outro, principalmente em rolê muito bagunçado, tipo baile de rua”, diz ele.
A psicóloga social Helen Barbosa dos Santos defende que o caminho é a informação. “Os rituais etílicos não se modificaram. O que se transformou ao longo das décadas foram os meios e os produtos acessíveis ao uso. Saber o que está bebendo e ter acesso às informações sobre redução de danos, como comer e ingerir água, é essencial”, comenta Santos.
Crack com bebida
Se as garrafinhas PET foram das mãos das pessoas em situação de rua para as mesas de baladas e barzinhos para a curtição dos jovens, as versões sem sabor e geralmente feitas com aguardente de menor destilação ainda são companheiras ingratas dos pacientes atendidos no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) pelo psiquiatra Jurandir Marcelino Ferreira Neto.
Segundo ele, há uma relação entre a drogadição e esse tipo de bebida. “Quem faz uso do crack também usa bebida alcoólica, em geral, o barrilzinho. Eles fazem uso compartilhado da mesma garrafa.”
De acordo com o psiquiatra, o vício em álcool é ainda mais difícil de tratar do que o do próprio crack. “O paciente que é viciado em álcool pode ter quadro delirante e convulsões, que inclusive podem levar a uma parada respiratória, se interrompido bruscamente o uso do álcool. As políticas de redução de danos são as mais efetivas. Tentar reduzir o dano que o uso de álcool traz para o sujeito. Entra-se com o uso de uma medicação que substituí o efeito do álcool no cérebro”, explica ele.
No entanto, nem todos os casos são tratados com uso medicamentoso. O especialista relembra o caso de um paciente com deficiência intelectual grave que bebia até três minibarris por dia. Ele teve contato com a bebida após jovens do bairro oferecerem o produto para ele, que começou a pedir esmolas para sustentar o vício. “A forma de reduzir o uso e os danos foi orientar a família a fracionar em três doses diárias menores e oferecer a bebida, à medida que ele completava atividades domésticas. A bebida também foi trocada por uma mais fraca e destilada mais vezes”, explica.
* Carla é um nome fictício. Nome alterado a pedido da entrevistada para preservar sua identidade
** O consumo de álcool foi investigado, inicialmente, a partir de seis perguntas introdutórias. Em seguida, houve a aplicação de um instrumento desenvolvido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) denominado Alcohol Use Disorder Identification Test. Esse instrumento aborda o padrão de consumo de álcool e suas consequências nos últimos 12 meses. É composto de dez perguntas, sendo três sobre o uso de álcool; quatro sobre dependência e três sobre problemas decorrentes do consumo. As respostas para cada questão recebem pontuação de 0 a 4, com o máximo de 40 pontos. Ao final do teste, os pontos obtidos são somados e, de acordo com o resultado, o padrão de consumo de álcool é identificado.
Fonte: UOL
Créditos: UOL