O sonho da maternidade acompanhava Aparecida Sobral, de 39 anos, desde a infância. Ela planejava uma família com marido e filhos. O plano de se casar foi alterado após desilusões em relacionamentos amorosos.
O desejo de tornar-se mãe permaneceu. Para isso, ela procurou na internet um homem que também quisesse um filho.
Depois de anos de buscas, Aparecida encontrou um parceiro que aceitou ter uma criança sem que houvesse um relacionamento amoroso entre eles. Hoje, ela é mãe de um garoto de cinco meses.
A história de Aparecida se assemelha a de outros brasileiros que também têm procurado uma parceria para criar um filho, sem a necessidade de um envolvimento emocional entre os pais. A prática em que duas pessoas se unem unicamente por uma criança é denominada coparentalidade. O termo traz uma nova vertente para a tradicional parentalidade, que define a ação de criar e educar filhos biológicos ou adotados que são frutos de envolvimento afetivo entre os pais.
ANÚNCIOS SOBRE COPARENTALIDADE
A busca por um parceiro de coparentalidade pode acontecer por meio da internet ou entre conhecidos. Nas redes sociais, grupos se dedicam exclusivamente ao assunto. O maior deles possui mais de quatro mil participantes. Nas publicações, interessados no novo modelo de família se apresentam, mencionam suas características e ressaltam a vontade de ter um filho.
“Tenho 29 anos e curso Arquitetura. Moro no Rio de Janeiro. Sou loira e tenho olhos azuis. Falo duas línguas e amo animais. Sou casada no civil com outra moça. Quero um parceiro que entenda que nosso filho tem que respeitar os pais e se orgulhar da família”, diz a publicação feita por uma mulher em um dos grupos de Facebook sobre o tema.
A partir do anúncio, os interessados se manifestam. O dono da publicação e a pessoa que se interessou por suas características iniciam conversas, por meio de mensagens privadas. O diálogo pode culminar no nascimento de uma criança.
Para definir possíveis pretendentes à coparentalidade, as pessoas levam em consideração questões como características físicas, nível de escolaridade, distância geográfica e até opiniões políticas.
A doutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano Iolete Ribeiro ressalta que o termo coparentalidade é a legitimação de uma prática antiga, que atualmente ganhou novas características. “Na história da sociedade humana, sempre existiram pessoas que cuidavam de crianças por vínculos de afeto, mesmo sem ter essa relação de casal”, explica.
“Mas agora existem discussões sobre novos papéis sociais e gêneros. O termo família tradicional cada vez mais vem se mostrando antiquado, porque, na realidade, existem muitos arranjos possíveis para a família”, acrescenta.
Em países como os Estados Unidos, a busca por uma companhia para ter um filho sem vínculo amoroso é considerada comum e existem diversos sites dedicados ao tema. No Brasil, o assunto é recente. Muitos daqueles que querem recorrer à prática não comentam com amigos ou familiares. Eles acreditam que podem enfrentar preconceito.
Aparecida Sobral descobriu sobre a coparentalidade há mais de oito anos. “Eu li sobre o assunto em uma revista. Mas, na época, era comum nos Estados Unidos, não no Brasil”, conta. Anos mais tarde, ela encerrou um relacionamento que classifica como extremamente abusivo. “Poderia até ter tido um filho, mas não seria uma criança amada pelos dois”, diz.
TÉCNICAS DE INSEMINAÇÃO CASEIRA
Depois de ficar solteira, Aparecida procurou, na internet, informações sobre pessoas que buscam métodos para ter um filho sem precisar estar em um relacionamento. Ela encontrou um grupo recém-criado sobre o tema. Depois de dois anos procurando por um parceiro na página, conheceu o pai de seu filho. “Conversamos por um ano, para eu ter confiança.”
Ela mora em Feira de Santana (BA) e o homem atualmente vive em uma cidade do interior do Pará – ele pediu para não ter a identidade divulgada. Apesar da distância, decidiram ter o filho.
O método escolhido pelos dois foi a inseminação caseira. Na prática, o homem coloca o esperma em um pote de coleta de exame – para preservar o conteúdo – e o entrega à mulher, que deve estar em período fértil. Em seguida, ela introduz o líquido na vagina por meio de uma seringa. Este é o método mais utilizado por aqueles que recorrem à coparentalidade.
A inseminação caseira não é considerada ilegal. Porém, o Conselho Federal de Medicina (CFM) afirma que não recomenda a prática, porque há diversos riscos, entre eles a possibilidade de transmissão de DSTs. Outros métodos também utilizados por quem busca a coparentalidade são inseminação artificial, fertilização in vitro, relação sexual ou adoção.
Aparecida e o pai do filho fizeram a inseminação caseira em quatro vezes distintas, porém não obtiveram sucesso. Na quinta tentativa, ela conseguiu engravidar. “Nem acreditei quando o resultado deu positivo, porque eu achava que não poderia mais ter filhos. Foi muita felicidade”, relembra.
Durante a gestação, Aparecida enfrentou dificuldades, em razão da endometriose – quando o tecido que reveste o útero cresce fora do órgão. “Eu também tenho outros problemas no útero, que fizeram com que minha gravidez fosse considerada de alto risco”, diz. Mesmo com as dificuldades, o pequeno Lucá nasceu aos nove meses, por meio de uma cirurgia cesariana. “Acredito que tenha sido Deus. Se não fosse agora, não conseguiria mais ser mãe.”
O pai da criança, que trabalha como militar, acompanhou a gestação de Aparecida por meio de aplicativos de mensagens e ligações. Ele esteve presente no dia do parto do filho e, atualmente, visita a criança a cada dois meses. “Ele junta as folgas e passa dez dias por aqui”, relata. Ela afirma ter uma boa relação com o companheiro de coparentalidade. “Somos amigos. Ele é um pai muito participativo”, diz.
Há quatro anos, Aparecida está desempregada. Ela é formada em um curso técnico de Segurança do Trabalho, porém não exerce a função em razão dos cuidados com a família. Além do filho, ela também cuida da mãe, de 79 anos, e da irmã mais velha, que possui esquizofrenia. “A minha rotina é muito corrida, não tenho tempo para nada. Infelizmente não consigo trabalhar”, diz. Atualmente, ela sobrevive com os benefícios recebidos pela mãe e pela irmã.
Os gastos com o filho, segundo ela, são divididos de modo igualitário com o pai da criança. “Desde que começamos a conversar, decidimos que todos os custos seriam repartidos. Ele me ajuda bastante e honra com tudo o que foi definido”, afirma.
GRUPOS DE COPARENTALIDADE
A responsável pelo grupo em que Aparecida conheceu o pai de seu filho é a jornalista Taline Schneider, de 37 anos. Ela criou, há quatro anos, a primeira página dedicada à coparentalidade nas redes sociais. Segundo Taline, 33 crianças nasceram, até o momento, de pais que se conheceram em seu grupo. “Isso sem contar os casos que não foram informados para a gente”, diz.
A jornalista criou a página porque desde a infância sonhava em ser mãe independente. “Eu me imaginava com um filho, mas nunca pensei em marido”, conta. Depois que terminou o casamento, Taline relata que os planos de ter uma criança sem precisar de um relacionamento voltaram a acompanhá-la. “Comecei a pesquisar sobre o tema, descobri a coparentalidade e decidi criar um grupo sobre o assunto.”
O grupo de Taline no Facebook foi crescendo e há um ano ela abriu um site sobre o tema. Nele, as pessoas avaliam perfis dos outros participantes e podem iniciar conversas. Na página, estão cadastradas 2,2 mil pessoas. Dessas, cerca de cem pagam por uma assinatura mensal ou trimestral, que varia de R$ 30 a R$ 80. Além disso, há também a comercialização de créditos, cujos valores correspondem a R$ 10 ou R$ 20, usados para interagir nas redes sociais com possíveis pretendentes.
“Muitos não pagam, porque concedemos diversos benefícios aos usuários que utilizam ativamente a plataforma. Por isso, o valor que recebo é muito pequeno e não arca com os gastos da página”, diz.
Mesmo afirmando que teve prejuízo com a página, Taline se orgulha por ter conseguido unir pessoas que buscam a coparentalidade. “É gratificante saber que mais de 30 crianças nasceram por meio de pais que se conheceram no site”.
Ela, porém, lamenta a falta de apoio. “Muita gente tem vergonha de admitir que teve o filho por meio da coparentalidade e isso prejudica os outros que também buscam o método, porque acaba colaborando para o preconceito, pois fica parecendo que as pessoas precisam se esconder”.
Na plataforma, há regras sobre o convívio entre os usuários. É proibido utilizar o site em busca exclusivamente de relações sexuais. “Há casos de pessoas que usam a plataforma apenas para fins sexuais. Esse não é o intuito da página. Há também os envolvimentos amorosos, que acontecem em muitas situações, mas as pessoas precisam compreender que a principal finalidade do site é encontrar um parceiro para a coparentalidade”, afirma.
Apesar de ter ajudado no nascimento de dezenas de crianças, Taline ainda não encontrou um parceiro para a coparentalidade. “Ao longo dos anos, conversei com 13 homens, que se encaixavam no perfil que procuro. Mas o grande problema foi a distância, por isso não deu certo. Não quero que meu filho tenha um pai que more longe”, diz a jornalista, que mora em Porto Alegre. Ela permanece à procura de um companheiro para a concepção da criança.
SER MÃE SEM RELACIONAMENTO AMOROSO
A advogada Amanda Barrozo, de 37 anos, também segue em busca de um companheiro para a coparentalidade. “Eu poderia recorrer à produção independente, mas gostaria que meu filho tivesse um pai presente”, relata. Ela se interessou pela prática por poder ser mãe sem precisar ter um envolvimento amoroso. “Tive relacionamentos que não deram certo. Então, acho muito interessante criar um filho sem os dramas que envolvem uma relação amorosa.”
Ela atua na área do Direito de Família e comenta que a experiência profissional a estimulou a buscar a coparentalidade. “Existem muitos casos de filhos de divorciados que enfrentam dificuldades por conta da separação e da relação complicada que os pais possuem depois do término”, diz a advogada.
Amanda, que mora em São Gonçalo (RJ), conversou com possíveis pretendentes. Porém, ainda não encontrou um que correspondesse ao perfil que busca. “É importante ser do Rio de Janeiro, porque a distância é um fator crucial. Além disso, quero uma pessoa sem preconceitos e sem excessos religiosos. Também não quero nenhum intolerante político, homofóbico ou racista”, afirma a advogada. Ela recebe o apoio da família na busca por um parceiro. “Eles entendem a coparentalidade. A mente dos que me rodeiam é aberta.”
O contador Paulo Gonçalves, de 35 anos, optou por não procurar um perfil específico na busca por uma parceira para a coparentalidade. “Eu penso que quando existe o desejo de ser pai, isso é irrelevante”. Ele mora em Divinópolis (MG) e há dois anos conheceu, em um grupo dedicado ao tema, uma parceira que mora em uma cidade a 200 quilômetros da sua.
Eles fizeram uma tentativa por meio da inseminação caseira, que não deu resultados. Agora, planejam tentar inseminação artificial ou fertilização in vitro, procedimentos que podem custar mais de R$ 15 mil. “Pretendemos buscar um laboratório, para dar início aos tratamentos ainda neste ano”, diz.
Paulo afirma não se preocupar em esperar mais alguns anos até que consiga ter um filho. “O nascimento de uma criança por meio da coparentalidade é um processo lento, porque há vários fatores que devem ser avaliados, como a distância, as visitas, as despesas e como serão tratadas as situações adversas”, acrescenta.
TER FILHOS COM AMIGOS
Por dois anos, o bancário Luiz Felipe*, de 33 anos, esperou por uma companheira em grupos sobre a coparentalidade. Ele relata ter vivido desilusões em relacionamentos amorosos e decidiu buscar uma parceria apenas para ter um filho. “Eu acabei desistindo de encontrar um grande amor para constituir uma família”.
Ele diz que não encontrou, nos grupos, nenhuma parceira. “As moças com quem conversei procuravam um relacionamento romântico e não a coparentalidade, então acabei desistindo”.
Ele, então, apresentou a coparentalidade a uma amiga bancária e propôs que tivessem um filho juntos. A mulher, que já era mãe de uma criança, aceitou. Eles optaram por tentar a gravidez por meio de relação sexual. “Fizemos testes, exames e nos preparamos com bastante cautela e responsabilidade para a concepção”, diz.
Depois de duas tentativas, a parceira de Luiz Felipe engravidou. Atualmente, a filha deles tem dois meses. Desde o nascimento da criança, os dois optaram por morar juntos. “Decidimos fazer isso para que possamos ficar perto da nossa filha. Mas não temos nenhum tipo de envolvimento amoroso, somos apenas pais amigos”, conta.
Na casa em que vivem, os pais da criança dividem todos os gastos e responsabilidades. “Não acertamos pensão ou valores fixos. Porém, abrimos uma conta conjunta, na qual nos organizamos em relação aos gastos com a nossa filha. Isso tem funcionado muito bem”, relata.
DIVISÃO DE DESPESAS NA CRIAÇÃO DOS FILHOS
A divisão das despesas com o filho ainda não é uma preocupação da técnica em enfermagem Janiele Bezerra, de 30 anos. Ela está grávida de quatro meses. O parceiro de coparentalidade é um homem de 43 anos, que ela conheceu em um grupo dedicado ao tema. Eles fizeram o procedimento de inseminação caseira e ela engravidou na primeira tentativa.
“Não quero estipular um valor para ele colaborar, mas sei que ele terá a consciência de que criança tem despesas e ajudará. Eu disse que jamais vou pedir algo, prefiro que ele dê aquilo que achar melhor. A única coisa que cobrarei é atenção e carinho para o bebê.”
Janiele tem um relacionamento com outra mulher há oito anos. A companheira dela tem três filhos e a apoiou na decisão de buscar a coparentalidade. “Eu ajudei a criar os meus enteados, então minha esposa sempre apoiou que eu também tivesse um filho”.
Ela conta que a descoberta da gestação foi um dos momentos mais importantes da sua vida. “Muita mulher sonha com esse momento. Foi muito especial quando descobri que tinha dado certo a inseminação caseira”.
O pai do filho de Janiele mora em Ituverava e ela em Ribeirão Preto, ambas as cidades em São Paulo. Segundo a técnica em enfermagem, o homem poderá visitar o filho sempre que possível e ficará com a criança em fins de semanas. “O bebê vai ser criado por mim e pela minha esposa, mas o pai também vai participar ativamente.”
Ela não planeja firmar nenhum contrato com o companheiro de coparentalidade. “Acredito que não iremos formalizar um acordo na Justiça. A minha única exigência é que ele dê atenção ao filho, então não acho que teremos problemas”, diz.
COPARENTALIDADE POR CONTRATO JUDICIAL
Em muitos casos de coparentalidade, os pais optam por formalizar contratos para definir regras sobre a guarda da criança, a convivência entre a família e questões financeiras. Aparecida e o pai do filho firmaram um acordo na Justiça que estabeleceu os direitos e os deveres de cada um.
O advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Rodrigo da Cunha Pereira, explica que os contratos firmados em casos de coparentalidade têm extrema relevância em situações de impasse entre os pais. “Apesar de ser um novo modelo de família, esses contratos são válidos como qualquer outro acordo jurídico”, explica à BBC News Brasil.
Pereira detalha que em caso de descumprimento do acordo, aquele que se sentir lesado pode procurar a Justiça.
PRECONCEITO CONTRA COPARENTALIDADE
Uma das maiores dificuldades para aqueles que buscam a coparentalidade, segundo as pessoas ouvidas pela reportagem, é lidar com o preconceito. “Essa prática é muito rejeitada porque dizem que representa o fim da família tradicional. Por isso, muitos preferem fazer escondido, para não ter esse tipo de julgamento da sociedade”, diz Taline.
Para a psicóloga Iolete Ribeiro, a coparentalidade representa um avanço importante para a legitimação de novas formações de família. “Esse modelo está relacionado com a natureza do vínculo que os pais estabelecem com a criança e não com o envolvimento do casal. A maternidade e o relacionamento conjugal são relações diferentes e sempre foram”, diz.
Iolete ressalta que apesar dos avanços que representa, a coparentalidade também pode trazer dificuldades. “Assim como em outros modelos, nem tudo será perfeito. Na coparentalidade, existe o desafio de escolher a pessoa que será sua parceira na criação do filho. Mas não há uma certeza de que aquele parceiro contribuirá de uma forma legal e cumprirá com suas obrigações.”
Mesmo tendo sido alvo de críticas, Aparecida não se arrepende de ter recorrido à coparentalidade. “Algumas pessoas fizeram chacota, mas eu não me importo. A gente vive em um país que tem muitas pessoas preconceituosas e, para elas, esse tipo de família não caberia na sociedade. Para mim, o importante é que consegui realizar meu sonho de ser mãe e hoje tenho o maior amor da minha vida”, diz.
*O nome foi alterado a pedido do entrevistado.
Fonte: metro
Créditos: metro