Antes mesmo do lançamento do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, em 2004, já havia quem desejasse esquecer completamente a existência do(a) ex após um final difícil do relacionamento. Ninguém inventou ainda o sistema do filme, que apaga totalmente as memórias de alguém da nossa cabeça, mas outros serviços prometem ajudar a superar esse baque.
Em 14 de fevereiro deste ano, simbolicamente no dia de São Valentim (dia dos namorados em diversos países), Lindsay Meck e Mika Leonard lançaram em Nova York (EUA) o Onward, uma assessoria para fins de relacionamentos. Ou, como elas preferem chamar, um serviço de ‘concierge de términos’.
A partir de 99 dólares, elas oferecem assessoria para as burocracias que ficam quando o parceiro vai embora: mudança de residência, reestruturação financeira, busca por um terapeuta – e até recomendação de móveis ideais para solteiros. Sim, elas dizem que isso existe.
“Quem faz esse papel normalmente é um familiar, um amigo”, afirma a psicóloga Andrea Lorena, do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da USP. “É alguém que fala: ‘vai para a terapia, vai para a academia’. Outro amigo cuida da parte legal, indica um advogado quando necessário.”
Em muitos casos, diz Andrea, uma das partes se vê perdida e sozinha após o término, principalmente quando o casal cria um círculo de amigos em comum ou é muito dependente do(a) parceiro(a). É aí que entra uma assessoria externa.
Desde que o serviço tenha como objetivo dar autonomia à pessoa, e não apenas ‘sugar’ seu dinheiro, pode ser um empurrãozinho importante rumo à nova fase da vida, afirma a psicóloga. “A pessoa está num momento mais fragilizado, e ter alguém que possa ajudar a se reerguer pode ser bom, se tiver um trabalho de acompanhamento psicológico.”
Mas as separações amorosas, principalmente de casais que moram juntos, sempre foram dolorosas. Por que então um serviço como esse encontrou terreno fértil agora?
A fuga das responsabilidades
Leomar Medeiros, supervisor comercial, tem 26 anos e não nega que um serviço como o Onward teria sido benéfico quando ele terminou um relacionamento que durou quase seis anos. “Mas eu vejo que isso mostra o quanto cada vez mais as pessoas estão se preocupando menos com elas mesmas. A gente está jogando os problemas na mão de outras pessoas para que elas resolvam”, observa.
O que ele descreve se insere na chamada “hustle culture” (cultura da pressa, em tradução livre). Como explica este artigo do jornal New York Times, as novas gerações estão cultuando com ainda mais intensidade o amor e a devoção ao trabalho, deixando outras responsabilidades de lado. Pode ser mais uma pista para entender por que preferimos terceirizar até rituais ‘normais’ de uma separação. Mas não é só isso. Outra questão a ser analisada é a mudança na dinâmica amorosa.
Leomar e o parceiro moravam juntos desde os 19 anos de idade e se consideravam casados. A decisão de dividir um apartamento em Curitiba (PR) não demorou muito: cada um vivia em uma cidade próxima da capital e, durante três meses, passaram quase todos os fins de semana juntos. “Como as nossas famílias não eram muito bem resolvidas em relação à nossa sexualidade, sempre ficávamos em um hotel. Fizemos as contas e vimos que fazia sentido alugar um apartamento.”
A questão financeira tem pesado na decisão de ‘juntar os trapos’ e consequentemente assumir um compromisso mais sério – principalmente nas grandes cidades – observa a psicanalista e escritora Regina Navarro. “Muita gente vai morar junto sem assinar documento, mas eu considero que é um casamento. Hoje não existe mais muita diferença entre assinar um papel ou não, e as pessoas vão morar juntas porque querem dividir despesas, ficar mais tempo juntas, são vários fatores”, diz.
Ao mesmo tempo, a separação é ainda mais fácil de ocorrer depois que começamos a viver com alguém. “As pessoas estão se unindo cada vez mais cedo, mas sem se conhecer totalmente, e consequentemente acabam rompendo muito”, observa Andrea. Regina explica que muitas relações terminam porque, com a convivência, é mais fácil perceber que a imagem idealizada que criamos do outro, baseada nas nossas expectativas de amor romântico, não corresponde à realidade.
Essa mistura moderna traz infelicidade. De um lado da balança, a falta de propósito no relacionamento. Do outro, a praticidade da vida a dois. Decidir terminar um casamento, noivado ou namoro longo já é difícil, e essa conta deixa tudo ainda mais complicado.
“Eu me peguei numa situação em que eu entendi que tinha muito mais a necessidade da companhia dele do que estar de verdade com ele, independente de existir afeto ou não”, avalia Leomar. Além da dor de se separar de alguém com quem estava há tanto tempo, ele também começou a fazer as contas. “Eu pensei: ‘agora serei 100% eu bancando a minha vida. Antes sempre tínhamos um ao outro para contar. Como ele tinha uma vida financeira bem mais saudável que a minha, a gente dividia as contas proporcionalmente e isso dava uma tranquilidade para os dois.”
Atualmente não é só o aluguel que pesa. Internet, Netflix, Spotify e outras contas que costumam ser compartilhadas pelos casais viram despesas integrais para quem quer manter os serviços. Atentas a situações como a de Leomar, Lindsay e Mika incluem no plano do Onward uma assessoria financeira para ajudar na reestruturação das contas.
O sinal dos tempos
No Brasil, as pessoas estão se casando menos e se divorciando com mais frequência – e cada vez mais cedo. Os casamentos duram em média 14 anos e um terço deles acaba em divórcio, aponta o IBGE. “Não há nada preocupante nisso”, afirma Regina. “Preocupante era o tempo em que não podia se separar.”
A psicanalista ressalta que, até meados do século 20, os casamentos por interesse político ou econômico eram a norma. Com a introdução de expectativas amorosas e sexuais, principalmente fomentadas pelos filmes de Hollywood, observa Regina, vieram as frustrações. “E as pessoas morriam muito mais cedo no passado”, complementa. “‘Até que a morte nos separe’, e em 20 anos de casamento a morte já separava. Agora chega a 50, 60 anos.”
Hoje, um serviço de assessoria de relacionamento se encaixa em uma sociedade que está mais livre para deixar para trás relacionamentos frustrados por expectativas que ela própria criou. Mas nem por isso o término é fácil.
É totalmente normal sentir que seu mundo acabou depois do fim de um relacionamento longo, dizem as psicólogas. Rituais como tirar os pertences de casa, preparar a mudança e partir para a nova vida são sim dolorosos e muitas vezes só são superados com ajuda profissional.
Mas é preciso diferenciar isso tudo de fragilidade na inteligência emocional, diz Andrea. “Vejo muitas pessoas chegando no consultório que são inteligentes porque estudaram bastante, mas inteligência emocional é completamente diferente. Racionalmente a pessoa sabe que o relacionamento não está legal, que não tem o que fazer, mas quer manter a todo custo.”
Ela afirma que o apoio psicológico é essencial nesses casos. A pessoa pode encontrar a solução em serviços externos de ajuda, desde que acompanhados por profissionais da psicologia, defende Andrea. “O serviço não pode tirar a dependência da pessoa no relacionamento e criar uma nova dependência.” O objetivo precisa ser a evolução do paciente (ou cliente) para uma vida feliz sozinho.
Fonte: Universa
Créditos: Luiza Pollo