Quem começar a ler aleatoriamente a biografia da banda carioca Planet Hemp pelo 39º dos 60 capítulos do livro – lançado quase ao apagar das luzes de 2018 – talvez fique com a sensação de que se deparou com relato desfavorável ao grupo.
Neste capítulo intitulado Saem dois, volta um, o autor Pedro de Luna contrapõe versões sobre a nada amistosa saída do baterista Wagner José Bacalhau do grupo e, na sequência, narra a demissão do empresário dos primeiros duros tempos do Planet, Ronaldo Pereira, tido como “romântico” e, por isso mesmo, suplantado na administração da agenda pelo outro empresário, Marcelo Lobatto.
Contudo, a impressão de desfavorecimento é totalmente falsa. Ao longo das 496 páginas do livro Planet Hemp – Mantenha o respeito (editora Belas Letras), o escritor, jornalista e quadrinista Pedro de Luna jamais deixa de tomar partido da banda fundada oficialmente em junho de 1993 por Luís Antônio da Silva Machado (1967 – 1994), o Skunk, com Marcelo Maldonado Peixoto, o Marcelo D2.
Sem ficar em cima do muro, a biografia sai em defesa do Planet Hemp nas implacáveis perseguições policiais que culminaram, em 9 de novembro de 1997, com a prisão dos músicos em Brasília (DF) em ação que repôs na pauta do Brasil a discussão sobre a descriminalização do uso da maconha, droga recorrente nas letras do primeiro álbum da banda, Usuário (1995).
Só que, paralelamente, o autor também jamais deixa de manter o respeito pelo leitor. A questão é que, ao escrever o livro, Pedro de Luna resistiu à tentação de maquiar a realidade de um grupo que, na medida em que cresceu, ardeu na fogueira das vaidades de músicos (re)conhecidos pelo temperamento forte.
A biografia explicita as recorrentes tretas entre os músicos – como a disputa entre D2 e o guitarrista Rafael Crespo quando este defendia a manutenção de um som mais roqueiro quando D2 já intencionava acentuar a batida do rap no repertório do Planet – e as idas e vindas de um grupo que, pela formação oscilante, sempre esteve mais perto de ser um coletivo do que uma banda propriamente dita com formação fixa.
Como algumas mágoas ainda persistem ao longo do tempo, um dos vocalistas, BNegão, se recusou a dar entrevista para Luna. Mas os demais protagonistas da história – Bacalhau, Formigão, Gustavo Black Alien, Rafael Crespo e D2, entre outros – relataram ao autor impressões e versões sobre a trajetória do Planet Hemp e, mesmo com a imprecisão da memória humana, esses relatos – aliados aos dados coletados por Luna em extensa pesquisa – resultaram numa das melhores biografias escritas no Brasil sobre o universo da música pop.
Planet Hemp – Mantenha o respeito é livro incendiário porque descortina sem censura os bastidores de uma banda de sucesso em narrativa clara que recicla o tripé básico sexo, drogas & rap’n’roll sob a luz da cena carioca alternativa dos anos 1990, última década em que as gravadoras deram (todas) as cartas no jogo do mercado fonográfico.
A propósito, um dos méritos do livro é reconstituir a atmosfera dessa cena. Enquanto detalha as origens de cada integrante do Planet Hemp, Pedro de Luna conta de passagem a saga de Fábio da Costa Batista para manter o Garage – casa de shows do underground carioca fundamental para o Planet aprimorar a pegada no palco nos primórdios da banda – e enfatiza a importância de personagens de bastidores como os produtores e agitadores culturais Bruno Levinson e Elza Cohen, ambos cruciais na história do grupo. É interessante a maneira como Luna mostra os caminhos dessas pessoas e os cruzamentos desses caminhos com a trilha seguida pelo Planet Hemp.
Pela natureza nua e crua do relato do autor, que retrata os artistas como seres humanos normais, sujeitos a erros e acertos, a atos de generosidade e a mesquinharias, a biografia já tem suscitado polêmicas – em ação até coerente com a história de uma banda que nunca foi unanimidade.
Em 28 de dezembro, a empresa Na Moral Produções postou nota de esclarecimento em rede social em que criticou o livro, caracterizado como uma “grande colcha de retalhos de inverdades”. Luna rebateu a nota também em rede social, inclusive com a exposição do aval explicitado por D2 em dedicatória escrita pelo líder dessa banda idealizada pelo heroico Skunk, cuja liberdade sexual e a paixão platônica por D2 também são documentadas na narrativa do autor do livro.
Por mais que possam haver imprecisões em alguns relatos (normais em biografias robustas), a atitude do autor de confrontar as várias versões dos fatos mais controversos já o absolve de antemão. Parece ter havido sempre uma busca pela verdade, por mais que essa verdade possa soar desagradável. E o fato é que houve brigas e rivalidades ao longo dessa trajetória – e a biografia realça as incompatibilidades dos gênios de D2, BNegão, Black Alien, Rafael Crespo, Bacalhau e do empresário Marcelo Lobatto.
Planet Hemp – Mantenha o respeito, vale repetir, é biografia exemplar porque o autor parece jamais ter se amedrontado com o aval oficial da maioria dos músicos na hora de escrever a história da banda. Prevaleceu o respeito pelo leitor e pela ideologia do Planet Hemp, que sempre hasteou a bandeira da liberdade de expressão.
Fonte: G1
Créditos: G1