Único patrimônio do réu no primeiro processo que chegou à fase de cobrança é moto que cobre 25% da dívida; governo federal nega objetivo arrecadatório da política de cobrança
Os primeiros agressores de mulheres condenados a ressarcir o INSS pelas pensões por morte pagas aos herdeiros das vítimas alegam pobreza. Para alguns advogados, os réus nunca pagarão as dívidas, que somam dezenas de milhares de reais.
Preso por assassinar a ex-namorada em 2012, o motorista Marcelo Sidnei Pires, do Rio Grande do Sul, foi o primeiro a ser alvo de uma condenação definitiva e que chegou à fase de cobrança – execução, no jargão jurídico. A Advocacia Geral da União (AGU), que representa o governo federal na Justiça, pediu R$ 22 mil, referentes à pensão por morte paga ao filho da vítima. O único patrimônio do condenado, entretanto, é uma moto cujo valor de mercado é de aproximadamente um quarto dessa quantia.
“Ele não tem condições financeiras. É uma execução inútil. Os pais dele vivem em casas simples, que começaram como invasão. Nem têm título de posse”, afirma a advogada Dileta Luiz Kisner, que representa Pires na Justiça criminal. “Ele continua me devendo [os honorários advocatícios].”
Para a advogada, o único efeito da decisão será impor mais restrições a Pires quando ele puder sair da prisão. “Ele nunca vai pagar. E, dependendo do trabalho que ele for buscar, não pode ter dívida [pendente no nome]”, afirma a advogada.
“O único bem que ele tinha ele matou”
A ação contra Pires faz parte de uma política que tem sido implementada progressivamente pela AGU, consistente em buscar ressarcimento aos cofres do INSS de gastos com benefícios decorrentes de ilícitos. A ideia é que os criminosos devem arcar com os custos impostos aos cofres da Previdência assim como acontece com os patrões responsáveis por acidentes de trabalho de seus empregados.
O governo aguarda essa tese ser sancionada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), num processo em que conta com dois votos favoráveis e um contrário, para mover uma enxurrada de ações contra agressores de mulheres e motoristas que causaram acidentes de trânsito ao dirigir de forma ilegal – embrigado ou acima da velocidade, por exemplo.
Atualmente, há 13 ações contra agressores. Além de Pires, o único condenado definitivamente é Alciomar de Oliveria Sagás, de Santa Catarina, que matou a tiros a mulher na saída de uma delegacia – ela havia ido até o local prestar queixa contra o marido.
Em 2013, o INSS entrou com uma ação para cobrar o equivalente a R$ 90,3 mil de Sagás. A reportagem não conseguiu falar com os representantes do acusado, que é um pescador e, em outro processo, precisou de apoio judiciário gratuito, só concedido a quem se declara pobre e incapaz de bancar um advogado.
Outros quatro homens foram condenados a ressarcir o INSS, mas ainda podem recorrer. Em três dos casos, os réus também dependem de apoio judiciário gratuito para se defenderem das cobranças do INSS, que somam milhares de reais.
De um deles, que em 2012 matou a mulher por esganamento dentro do barraco que compartilhavam em Riacho Fundo (DF), o instituto espera receber R$ 157 mil. De outro, condenado por assassinar a companheira a facadas em Caruaru (PE), a expectativa é obter R$ 34,6 mil. De um terceiro, um aposentado que esfaqueou a ex-mulher no momento em que ela ia a pé para o trabalho em uma fábrica de calçados em Lajeado (RS), R$ 34,2 mil.
O quarto condenado é Douglas da Silva, preso há três anos por asfixiar e degolar a mulher em Itajaí (SC). O INSS espera que o réu, um garçom, pague R$ 98.169,94.
“Só em outra encarnação [ele conseguirá pagar]”, afirma Vilson Campos, advogado que defendeu o garçom no processo criminal – a madrasta teve de bancar os serviços. “O único bem que ele tinha era a mulher que ele matou.”
Não é feita avaliação da renda, diz AGU
Chefe da Divisão de Gerenciamento de Ações Regressivas e Execução Fiscal Trabalhista da Procuradoria-Geral Federal, Nícolas Calheiros afirma que a AGU não analisas as características dos agressores para decidir se entra ou não com ação de ressarcimento.
“Isso [o fato de os condenados serem declaradamente pobres] passaria por uma abordagem sociológica ou de política criminal e a AGU não participa disso”, afirma. “Presentes os pressupostos [necessários para cobrar o ressarcimento], a gente tem de entrar. Não existe uma previsão legal que nos permita selecionar o réu pela condição financeira.”
Calheiros relata que os casos chegam até à procuradoria pela Polícia Civil, pelo Ministério Público, pela imprensa e por uma organização não-governamental que combate a violência contra a mulher.
“Nós temos fontes das quais recebemos a informação de que foi concedido um benefício por tal crime e nós vamos atrás e perseguimos [o ressarcimento]”, afirma. “A gente não seleciona. Se tívessemos selecionado, os réus teriam condições econômicas.”