“Há um salgueiro que cresce sobre um riacho
Que reflete as folhas cinzentas na vítrea corrente.
Lá ela fez estupendas guirlandas com ranúnculos,
Urtigas, margaridas, e orquídeas púrpuras,
Que rudes pastores dão um nome mais chulo,
Mas nossas castas moças chamam “dedos-de-defuntos”
Quando ela estava escalando os galhos suspensos
Pra neles pendurar seus buquês floridos, um ramo,
Cioso, quebrou, e ela e as guirlandas silvestres
Caíram no choroso riacho. Suas roupas
Abriram-se, e como uma sereia boiou por momentos;
Nesse ínterim ela cantou trechos de velhos cânticos,
Como alguém insensível ao próprio sofrimento,
Ou como uma criatura nativa e habituada
Àquele elemento. Mas não demorou muito
Até que seus trajes, pesados com o líquido,
Puxassem a pobre infeliz de seu doce canto
Para a lodosa morte.”
É assim descrita a morte de Ofélia na obra Hamlet, de William Shakespeare. O dicotômico amor da moça pelo príncipe e pelo pai, Polônio, precipitou sua tragédia: quando ele é assassinado por seu amante, ela enlouquece. Em sua última aparição, demonstra comportamentos peculiares. Quem nos conta o incidente é a Rainha Gertrudes algumas cenas depois, nessa belíssima descrição. A linguagem poética deixa uma sensação agridoce: coexistem o desconforto da tristeza e o deleite do encanto.
O suicídio de uma personagem tão nova e tão doce choca o espectador. Ofélia representa a feminilidade e a inocência, continuamente sufocadas pela violência do patriarcado – uma jovem rodeada por homens poderosos que a subjugam e a exploram para seus interesses egoístas. Seu pai a manipulou e ditava seus comportamentos conforme ideais conservadores; Hamlet desconta nela as frustrações que tinha com a mãe, menosprezando-a apenas por ser mulher. Não importa quão leal e virtuosa fosse, a condição de ser feminina era um alvo em suas costas.
Em sua última cena, ela cantarola pelos corredores e entrega flores àqueles que encontra pelo castelo. Ao irmão, Laertes, dá alecrim (“[…] que é pra lembrança”) e amores-perfeitos; ao Rei Claudius, funcho e aquileias; à Rainha Gertrudes e a si mesma, arruda. Ela também leva uma margarida, mas não a entrega a ninguém. Por fim, diz: “Eu vos daria algumas violetas, mas ressecaram todas quando meu pai morreu”.
“OFÉLIA [para Laertes] Eis alecrim, que é pra lembrança. Por favor,
amor, lembra. E eis amores-perfeitos; para os pensamentos.
LAERTES Uma lição da loucura — pensamentos e lembrança
ajustados.
OFÉLIA [para o rei] Eis funcho para vós, e aquileias. [para a rainha]
Há arruda para vós, e aqui uma pra mim. Podemos chamá-la de erva da
graça dos domingos. Oh, deveis usar vossa arruda de outra forma. Eis uma
margarida. Eu vos daria algumas violetas, mas ressecaram todas quando
meu pai morreu. Dizem que ele teve um bom fim.”
Aparentemente inócuo, o gesto revela a última tentativa de Ofélia de reafirmar sua autonomia à maneira que conhecia: pela graciosidade. Cada uma das flores comunica algo a seu remetente. Mesmo sob o véu da insanidade, ela dá vislumbres de sua perspicácia.
A pintura
Um dos artistas que melhor devolveu à moça seu poder simbólico foi John Everett Millais na obra Ofélia (Ophelia), de 1851-1852. Nela, a personagem afunda num rio dinamarquês, rodeada por uma rica e detalhada vegetação. A protagonista da pintura é, simultaneamente, Ofélia e a natureza; a dor e a beleza. Isso se torna mais evidente pelo processo da pintura, na qual a paisagem foi pintada antes mesmo que a personagem.
Arbustos, galhos, troncos e relva adornam o rio. As cores são vívidas na exata medida, como se víssemos a cena através de uma janela – Millais misturava o mínimo possível suas tintas para conservar sua pureza. A natureza é próspera, alheia à tragédia que emoldura, não menos bela.
Flutuando como uma sereia, Ofélia abre os braços e encara os céus. Sua pose se assemelha às dos retratos de santas e de mártires. A palidez de sua pele contrasta com a flora; os cabelos acobreados serpenteiam na água. Seu vestido é cintilante, um fino tecido prateado e bordado em padrões dignos de uma princesa. Adornando seu pescoço, um colar de violetas. A cena é onírica e Ofélia, angelical.
O cenário demorou cinco meses para ser pintado, durante os quais Millais ficou às margens do rio Hogsmill, na Inglaterra, para capturar tudo com máxima precisão: desde as ondulações da água até os pormenores das pétalas. Esse longo período de tempo permitiu que flores de estações distintas apareçam lado a lado na obra.
Seu filho, John, relatou que elas eram tão realistas que um professor de botânica, incapaz de levar sua turma ao campo, a levou para ver a pintura, cujas plantas eram tão didáticas quanto a natureza. Naquela época, a fotografia tinha sido inventada há apenas 12 anos – o nível de nitidez das fotos era inferior aos das pinturas, principalmente as de Everett.
Estudo para Ophelia
A modelo para a Ofélia foi Elizabeth Siddal, uma artista e poeta de 19 anos. Ela posou numa banheira cheia de água por horas enquanto usava um intricado vestido de brechó. Lâmpadas a óleo eram colocadas abaixo para mantê-la aquecida – às vezes, porém, se apagavam, e John estava tão imerso no trabalho que não notava. Siddal acabou adoecendo e ficou sob os cuidados de um médico particular. Felizmente, ela se recuperou (e Millais arcou com os custos).
As flores e seu simbolismo
As flores que Ofélia dá ao irmão – alecrim e amores-perfeitos – são associadas a lembranças e à rememoração, comumente usadas em guirlandas funerárias. Em inglês, o amor-perfeito é nomeado “pansy”, que deriva do francês “pensée” – pensamento. A escolha dessas duas espécies pressagia o seu fim e materializa o seu desejo em ser lembrada por Laertes, que muito a amava.
Ao Rei Claudius, o funcho (ou erva-doce) e a aquileia. A erva-doce é um emblema de falsa lisonja: na Idade Média, suas sementes eram usadas para suprimir o apetite em peregrinos durante o fastio, dando uma falsa sensação de sustento. A aquileia, por sua vez, é a flor dos “amores mortos”, associada ao adultério masculino e à deslealdade.
À Rainha Gertrudes, arruda: um alerta para que ela se arrependa de suas más ações e, também, sinônimo de amargura. A margarida, símbolo da inocência, é a flor que Ofélia se recusa a abrir mão – apenas ela tem coração puro e boa índole, virtudes que fenecem com ela.
Por fim, há as violetas – associadas à lealdade e à fidelidade – que “ressecaram” quando Polônio morreu. Outro significado delas é o de morte precoce e de castidade. Antes dessa cena, são mencionadas por Laertes quando ele revela sua perspectiva em relação à afeição de Hamlet por Ofélia:
“Quanto a Hamlet, e à frivolidade de sua atenção,
Tome como moda e um capricho sensual,
Uma violeta no vigor da natureza plena,
Prematura, não permanente, amena, não perene,
O aroma e passatempo de um minuto,
Não mais.”
Seu irmão acredita que o amor do príncipe é superficial e efêmero, pois, como futuro rei, não poderá se casar por amor – tal qual uma violeta, seu interesse irá murchar rapidamente. Na obra, então, elas ganham a dimensão da fragilidade.
Millais traz algumas dessas flores de Shakespeare e acrescenta outras para enriquecer as metáforas. Margaridas flutuam próximas à mão direita da personagem; rosas brancas e cor-de-rosa aludem ao apelido dado por seu irmão – “rosa de Maio” – e sugerem beleza, juventude, amor; violetas envolvem seu pescoço; amores-perfeitos, em tons vibrantes de roxo e amarelo, flutuam pelo vestido; um olho-de-faisão vermelho e algumas fritilárias coloridas simbolizam sua dor.
Nas margens do rio, um salgueiro se curva sobre o corpo, chorando o amor perdido; pequenos botões-de-ouro, na porção inferior, comunicam infantilidade ou ingratidão; as urtigas ao redor da árvore representam sofrimento; as filipêndulas à direita, futilidade, falta de sentido na morte de Ofélia. Por fim, discretas e azuláceas, não-me-esqueças autoexplicativas.
O lirismo visual de John Everett é encantador mesmo na ausência de seu simbolismo subjacente. A flora comunica feminilidade e inocência; o olhar da jovem, morbidez. É esse casamento que torna Ofélia tão hipnotizante: o rubro de suas pétalas e o mordaz de seus espinhos.
“Muitas vezes sucede que as verdadeiras tragédias da vida se desenrolam de maneira tão pouco artística, que nos acabrunham pela crua violência […], pela completa falta de estilo…[…]. Às vezes, entretanto, uma tragédia contendo elementos artísticos de beleza envolve a nossa a vida; se tais elementos são reais, ela produz em nossos sentidos o puro efeito dramático”
A Irmandade Pré-Rafaelita e Siddal
John Everett Millais era um dos integrantes da Irmandade Pré-Rafaelita, grupo artístico inglês fundado em 1848 que se inspirava na arte anterior a Rafael Sanzio. Os pré-rafaelitas se opunham ao academicismo inglês e suas regras. Almejavam por devolver à pintura sua candura e o espírito romântico que predominou na arte medieval do final do Gótico e no início do Renascimento. A arte pela arte, frívola, perdeu seu espaço.
A natureza ganha destaque para esses artistas, tanto na tela como no método: tradicionalmente, as paisagens eram esboçadas ao ar livre e devidamente pintadas em estúdios. Millais e seu grupo, contudo, faziam todo o processo no campo. Os elementos vivos ajudavam a traduzir a beleza poética de modo orgânico, mas sem perder harmonia. Há o detalhismo quase fotográfico, que ornamenta cada centímetro do campo visual; as tintas são luminosas e ajudam a mudar a atmosfera. Os temas de romance e de erotismo são envernizados por inocência e entregam personagens mais complexos.
Ofélia é, sabidamente, a expressão máxima do pré-rafaelismo inglês. Sua temática da mulher em sofrimento, vulnerável, era comum; possui cores que se assemelham a joias em contraste com a protagonista pálida; o realismo da flora; as técnicas, o bucolismo. Uma bela renderização da heroína de Shakespeare.
Fonte: Querido Clássico
Créditos: Polêmica Paraíba