Fora do ar desde o final de 2017, o jornalista Maurício Kubrusly está deixando a Globo após 34 anos de casa, os três últimos enfrentando sérios problemas de saúde. Em comunicado distribuído na emissora nesta sexta (31), o diretor-geral de Jornalismo, Ali Kamel, disse que Kubrusly, aos 73 anos, “parte para viver novo sonho” (leia abaixo).
O Notícias da TV apurou que a iniciativa de não renovar o contrato partiu da Globo, e isso já era esperado pelo jornalista. A emissora, no entanto, lhe ofereceu uma generosa indenização e manterá seu plano de saúde.
Kubrusly ocupa um lugar de destaque na história do jornalismo cultural brasileiro. Repórter irreverente e original, começou a carreira no Jornal do Brasil e, durante dez anos, dirigiu a revista Somtrês, a primeira do país especializada em música, uma bíblia para roqueiros que cresceram nos anos 1970 e 1980.
O jornalista resistiu ao assédio da Globo até 1985, quando foi contratado pela emissora para cobrir o primeiro Rock in Rio. Na emissora, fez de quase tudo até que em 2000 emplacou o quadro Me Leva, Brasil, no Fantástico. A atração, para a qual muitos diretores da Globo torceram o nariz, fez tanto sucesso que foi exibida até setembro de 2016, quando Kubrusly adoeceu.
Em novembro daquele ano, o jornalista teve um infarto e precisou colocar dois stents no coração. Apareceu esporadicamente no ar até o final de 2017. Na festa de fim de ano do Fantástico, sofreu uma queda e teve novos problemas de saúde. Precisou de cirurgia para tirar coágulo do cérebro.
Seu sumiço da TV coincide com o surgimento de uma espécie de demência. Segundo pessoas próximas a ele, há dias em que Kubrusly lembra de tudo e outros em que não reconhece ninguém. Mas não se trata de Alzheimer, diferentemente do que se fala nos corredores da Globo.
Apesar da saúde debilitada, Kubrusly ia trabalhar quase todos os dias, participava de reuniões de pauta e escrevia textos, mas não gravava. Isso o deixou chateado. Neste mês, como já esperava, recebeu a notícia de que seu contrato, que venceu nesta sexta, não seria renovado.
Um repórter sem rótulo
A seguir, a íntegra do e-mail de Ali Kamel sobre a saída de Kubrusly:
“Como definir o estilo, o jeito de contar histórias de um jornalista tão original como o Maurício Kubrusly? Sim, esse e-mail é para contar que Kubrusly está deixando a TV Globo. E para homenageá-lo também.”
“Definir o estilo não é fácil, e para tentar responder a essa pergunta, assisti ao primeiro VT do Kubrusly como repórter contratado da TV Globo. O ano era 1985. O assunto, a reestreia em São Paulo da peça Ubu, Pholias Physicas, Pataphysicas e Musicaes, do Grupo Ornitorrinco, com Cacá Rosset e Rosi Campos. Convido vocês a conferir o arquivo em anexo.”
“Entenderam? Kubrusly não dá pra classificar, rotular. Ele é o oposto do convencional. Poucos repórteres podem dizer que criaram uma marca. Mauricio Kubrusly conseguiu. Do jornalismo cultural dos anos 1970 e 1980 a um dos quadros mais adorados da história do Fantástico, ele virou referência na nossa profissão. Com leveza, inteligência e generosidade. Poucos conseguiram de imediato fazer parte da memória afetiva do programa. Com o seu Me Leva, Brasil, Kubrusly conseguiu. É um feito.”
“Carioca criado em Botafogo, Kubrusly foi aluno do Colégio Pedro II. Desde cedo, o jornalismo o atraiu: participou de dois jornais estudantis e começou cedo a carreira, aos 18 anos, em 1963. Não demorou e já estava no Jornal do Brasil, entrevistando gente de ouro como Vinicius de Moraes. Pouco depois, mudou-se pra São Paulo e logo foi trabalhar no recém-criado Jornal da Tarde.”
“Nos anos 1970, Kubrusly se especializou como colunista e crítico musical. Tornou-se uma ‘autoridade’, embora a palavra não combine com o jeito despojado dele. Da revista Senhor à Somtrês, que minha geração lembra com saudade, passando pelo programa de rádio Sr. Sucesso, da Excelsior, ele se tornou um dos mais respeitados jornalistas de cultura. Entrevistou todos os grandes nomes da nossa música, sem preconceito e sem reverência cega. Ao lado de Zuza Homem de Mello, no programa Jogo da Verdade, na TV Cultura, Kubrusly fez a última entrevista de Elis Regina, em 1982. Ela morreu duas semanas depois.”
“A aproximação com a Globo foi aos poucos. Em 1979, Vera Iris tentou contratá-lo, mas ele não quis. Preferiu fazer participações esporádicas, como colunista em alguns telejornais. Veio pra valer em 1985, cobriu o primeiro Rock in Rio e foi construindo a persona inimitável que a gente reconhece no vídeo em poucos segundos.”
“Kubrusly virou repórter exclusivo do Fantástico em 1997, e o Luizinho [Luiz Nascimento, ex-diretor do Fantástico], lá de Portugal, conta que a sintonia foi forte e imediata, sem se apegar a fórmulas prontas, sempre criativo: ‘Não conheci ninguém mais habilidoso que o Maurício na arte de extrair, dos personagens, fossem eles ricos ou pobres, caipiras ou doutores, histórias –as mais engraçadas; sentimentos– os mais profundos. Com aquele jeito fanfarrão e descontraído, se divertia com as mais estranhas bizarrices. Mas também tinha elegância e respeito para narrar delicados dramas humanos’.”
“Em 1998, Kubrusly propôs a reportagem que viria a ser o embrião de um dos quadros de maior sucesso do Fantástico. Ele embarcou na viagem de ônibus mais longa do Brasil, quase 5 mil quilômetros entre Pelotas e Fortaleza. Depois dessa aventura, ele não tirou mais da cabeça a ideia de percorrer o país pra contar as histórias de brasileiros peculiares. Em 2000, nasceu o Me Leva, Brasil.”
“O título certeiro foi ideia de Zeca Camargo. Em 17 anos no ar, o Me Leva, Brasil rendeu 270 reportagens. O conceito foi ampliado para temporadas internacionais, viajando por países como Itália, Portugal, Índia. O quadro revelou personagens impagáveis, como o senhor mais azedo e mal-humorado que já se viu, o Seu Lunga; o pão-duro de Caicó, que chegava a dividir um palito de fósforo em dois pra economizar; o bode que seguia cortejos fúnebres; o padre ginecologista, a mulher-sereia… Figuras que a produtora Karina Dorigo encontrava nos recantos mais distantes. Ela ajudou a formatar o quadro, trabalhando em parceria com o Kubrusly nos primeiros quatro anos de Me Leva, Brasil.”
“Kubrusly também visitava festas regionais. Numa entrevista, ele disse: ‘Pode ser a festa do caqui, da banana, do chifre de boi, da farofa. Até a festa da farofa eu fiz, Campeonato Brasileiro de Farofa. E era engraçado, porque o Pedro Bial dizia sempre assim: ‘Festa! Onde andará o Mauricio Kubrusly?’ E abria pra mim. Quando terminava o meu trabalho, eu ficava conversando com as pessoas”.”
“Nos últimos anos a saúde deu três sustos, superados, mas que fizeram o querido Kubra, como o pessoal do Fantástico gosta de chamá-lo, seguir outros caminhos. Depois de 34 anos na Globo, ele parte para viver novo sonho. Um projeto pessoal que, logo mais, será dividido por ele com todos.”
“Kubrusly, obrigado por todos esses anos de extrema competência e profissionalismo. Sua contribuição para a Globo e para o jornalismo brasileiro já são História (com agá maiúsculo). Uma história que vai continuar a ser escrita fora daqui. Em meu nome pessoal e no da Globo, eu expresso uma imensa gratidão. Muito obrigado.”
“Bruno Bernardes, que pegou o bastão de Luizinho, e que acompanhou seu trajeto no Fantástico por vinte anos, sempre com admiração, me faz terminar esse e-mail com a observação:”
“‘Mas você ainda não explicou o que é Pataphysica!'”
“Kubrusly, obrigado e boa sorte.”
Fonte: UOL
Créditos: DANIEL CASTRO