história e legado

A DEUSA, A NEGRA: Elza Soares fala de racismo e superação e avisa que a carne mais barata do mercado hoje vale uma tonelada

A DEUSA, A NEGRA: Elza Soares fala de racismo e superação e avisa que a carne mais barata do mercado hoje vale uma tonelada - Por Elza Soares

“Você sabe que o Brasil é o país mais racista que existe, né?”, dispara Elza Soares numa pergunta que já vem respondida. “Mas eu não deixei que me atingisse moral nem fisicamente.”

À primeira vista, a cantora, sentada na sala de seu apartamento que dá de cara para o mar de Copacabana, poderia soar contraditória. Mas Elza já enfrentou tantos episódios de preconceito que optou por deixá-los pelo caminho. “As pessoas precisam ter paciência para não deixar que isso machuque tanto.”

Se há quase 20 anos Elza se reinventou na carreira cantando que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, no recém-lançado álbum “Planeta Fome”, ela agora avisa que a tal carne não está mais de graça. “Vale uma tonelada”, responde com a mesma potência. Para ela, não cabe mais repetir que o negro tem pouco valor.

Elza sabe bem quanto custam sua pele, cor e trajetória. Reconhecida como a melhor cantora do milênio pela BBC, em 1999, ganhou prêmios como o Grammy Latino por “A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015. Foi com esse álbum, aliás, que a cantora de voz rouca e rasgada deixou também para trás o velho título de rainha do samba para ser aclamada por fãs e críticos como porta-voz de bandeiras políticas musicais e diva de uma nova cena contemporânea: “Sou negra e maravilhosa. Elza Soares. A deusa, a negra”.

No Dia da Consciência Negra, celebra nova turnê, homenagem em musical premiado, uma cinebiografia em pré-produção —em que a atriz Taís Araújo viverá a cantora— e será enredo da escola de samba Mocidade Independente no próximo Carnaval. Sem modéstia, diz que merece todas as homenagens: “Eu trabalhei para isso”.

Foram mais de oito décadas pra chegar até aqui. Foi forçada a casar cedo, perdeu filhos, amou e sofreu pelo craque Garrincha, penou com o preconceito e com o que ela chama de “mal do século”: a violência doméstica. Episódios difíceis sobre os quais, assim como a idade, ela prefere não falar.

Numa tarde de quinta chuvosa, a cantora chega para essa conversa com Universa em sua sala, sentada em uma cadeira de rodas. Precisa de ajuda se quiser ficar em pé, dificuldade surgida após ter feito cirurgia na coluna.

Elza está cansada. Mas ai de você se perguntar a ela sobre o legado que quer deixar. Ou sobre um possível fim. “Pelo amor de Deus. Não tenho tempo de pensar nisso. Se pensar nisso agora, vão achar que estou indo embora. Penso no agora. Não penso no fim.”

Negra e maravilhosa

Nascida negra e pobre, em Padre Miguel, zona oeste do Rio de Janeiro, neta de escrava, Elza viveu o racismo nas mais variadas formas. No início da carreira, foi proibida de subir em muitos palcos. Teve uma gilete largada dentro de sua roupa após uma apresentação na rádio Tupi. Foi para casa sangrando. “Mais uma dificuldade que eu teria que driblar”, disse ao jornalista Zeca Camargo na biografia “Elza”, lançada no ano passado.

Nos anos 1960, foi impedida de se hospedar em hotéis porque era “gente de cor”. E, no fim da década de 1950, foi recusada pela gravadora RCA Victor pelo mesmo motivo. Numa recente participação no festival Forró da Lua Cheia, em Altinópolis (SP), admitiu que as portas custam muito a se abrir para os negros. “A cor da pele é difícil. Pesa muito mais.”

Mas, hoje, Elza parece não querer carregar tanto peso. E a resposta que ela dá ao racismo é menos a raiva e mais o equilíbrio.

“Sempre lutei muito. Nunca olhei no espelho a cor da minha pele. Acho que não vale a pena. Sempre olhei para mim como mulher e ser humano. As pessoas precisam ter paciência para não deixar que isso [o racismo] machuque tanto. Vá à luta. Esqueça”, aconselha.

“Eu me sinto maravilhosa. Nasci negra, me orgulho de ser uma mulher negra, por ter vencido. Sou negra e maravilhosa. Elza Soares. A deusa, a negra.”

Racismo não me atinge

“Você sabe que o Brasil é o país mais racista que existe, né?”, pergunta, após um longo suspiro.

Elza, que já viajou o mundo e morou em Roma, na Itália, puxa com rapidez da memória um dos episódios de preconceito que mais lhe marcaram —dentro de seu próprio país. Era ainda a década de 1950, quando conquistou um contrato com a gravadora Odeon. Única negra do casting do selo, era também a única que não ganhava dias de festa quando lançava um álbum.

“Quando saíam os discos dos outros cantores, eles passavam a noite festejando. Nunca tive isso. Mas quem cantava mais era eu, e não ligava muito. A minha voz estava acima de qualquer coisa.”

Talvez por tudo que conquistou, apesar da ameaça constante da discriminação, Elza insiste em repetir que não vale dar espaço para o racismo. Mas não deixa de cantar sobre a desigualdade em músicas e shows.

“Eu preciso encontrar um país / Onde a corrupção não seja um hobby / Que não tenha injustiça, porém a justiça / Não ouse condenar só negros e pobres”, protesta em “País do Sonho”, faixa do novo álbum.

“Lembro do meu pai contando que sofria muito racismo, mas hoje não tem mais graça você falar disso. Está na cara que existe o racismo. Mas acho tão bobo, tão insignificante. Eu não deixei que me atingisse moral nem fisicamente. Pra mim, ele pode estar aí. Eu vou em frente.”

Sobre racismo

A carne não está mais barata

Logo após ser considerada a melhor cantora do milênio pela BBC de Londres, em 1999, Elza aproveitou o embalo e lançou o elogiado disco “Do Cóccix até o Pescoço”. No repertório, elevou à máxima potência a voz rouca e incomparável para denunciar: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. O verso de “A Carne”, música de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Capelletti, estourou nas rádios. E é usado, desde então, para denunciar o racismo e a violência enfrentados pelos negros no país.

Mas, quase 20 anos depois, o discurso mudou. Agora, no álbum “Planeta Fome”, Elza grita, com a mesma intensidade, que a carne não está mais de graça. Em sua biografia, justifica: “Se eu continuar repetindo o verso como ele era, vou estar reafirmando justamente o que a sociedade quer. Disse: ‘Chega!’ Minha mãe é negra. Minha avó é negra. Minha voz é negra. Mas ela não é a mais barata do mercado -não mais. Nunca foi. Nunca deveria ter sido. Minha carne é cara, é valorizada”.

Quanto vale, Elza?

“Vale muito. O que não valia nada hoje vale uma tonelada, meu amor.”

O mal do século

“Não vou falar de política”, avisa Elza, diante de perguntas sobre a realidade do país. Faz uma negativa com a cabeça. E se cala. Hoje, Elza prefere concentrar seus protestos nas músicas (como “Maria da Vila Matilde”, em que ameaça denunciar o personagem agressor à Central de Atendimento à Mulher —”Cadê meu celular?/Eu vou ligar pro 180″) e nos shows.

Como na sua recente participação no Rock in Rio, em setembro, quando gritou “machistas não passarão” e “vamos aprender a votar, porque nós não sabemos”. Entoou também nomes de vítimas da violência no Rio, como o da menina Ágatha Félix, 8, morta por estilhaços de uma bala de fuzil no Alemão, na zona norte, e o da vereadora do PSOL Marielle Franco, assassinada em 2018.

Em casa, o tom não é de revolta, mas de lamento. Elza se diz “pasma” com a violência contra a mulher. “É o mal do século. Aliás, é mal da vida toda”, define.

“Não devemos ter ódio. Minha raiva está no bem. A raiva faz com que a gente tenha mais força, mais coragem. É raiva de luta, de busca pelo bem.”

Forçada pelo pai a se casar aos 13 anos, Elza foi estuprada e espancada após a união com Alaordes Soares, dez anos mais velho. O homem ainda tentou atirar duas vezes contra ela quando descobriu que a mulher se tornara cantora. Um dos tiros pegou de raspão no seu braço. Por medo, Elza não denunciou.

Anos depois, sofreu agressões daquele que seria seu grande amor, o jogador de futebol Garrincha (1933-1983), já no fim do casamento de 17 anos. Num desses episódios violentos, Elza teve os dentes quebrados por ele, conforme descreve Ruy Castro na biografia do craque, “Estrela Solitária”. Já no livro de Zeca Camargo, a cantora justifica o comportamento do parceiro: “Não era ele quem fazia aquilo, era a maldita bebida”.

No fim da década de 1970, a cantora quis denunciá-lo, mas desistiu, quando, já na delegacia, soube que Garrincha poderia pegar de dois a quatro anos de prisão, caso fosse condenado por lesões corporais. E foi embora de casa quando percebeu que o alcoolismo do companheiro poderia prejudicar a vida do único filho do casal, Garrinchinha. São lembranças que Elza não gosta de resgatar.

Deus é mulher?

“A mulher tem que denunciar e não apanhar nunca. Até hoje fico pasma. Ela bota o homem no mundo e ainda vem a violência contra a mulher. Eu não entendo. É muito difícil pra minha cabeça”

“Largue tudo e vá embora, porra. Não aceite a violência. A mulher tem que saber se defender. E tem que ter um lugar onde a vítima tenha comida, banho e possa se esconder”

“Tenho fome de amparo para os negros, para as mulheres, para tudo. Sou do tempo em que estudantes iam para as ruas e gritavam pelos seus direitos. Está faltando isso”

Mães e filhos

O casamento precoce fez de Elza mãe muito cedo, aos 14 anos. E a fez conhecer, também precocemente, a dor de enterrar não só um, mas alguns filhos. A cantora sofreu abortos, perdeu filho para a fome ou logo após o parto. Um acidente automobilístico levou Garrinchinha aos nove anos, em 1986. E, em 2015, teve de se despedir de Gilson, que morreu por complicações de uma infecção urinária.

Apesar das dificuldades, a cantora afirma que criou os meninos (Carlinhos, Gérson, Gilson e Garrinchinha) e as meninas (Dilma e Sara) da mesma forma. O que seria, segundo ela, uma das maneiras eficazes de combater o machismo.

“Não tem distinção. Mas você sabe que é a mulher que faz isso, né? Ela diz: ‘Meu filho não lava a louça, meu filho não varre casa, meu filho não chora, meu filho é homem’. Aí cria aquele menino cheio de preconceito. O filho tem que ser criado igual à filha. E tudo bem.”

Legado?

Em 1999, a cantora caiu de um palco de aproximadamente dois metros de altura numa casa de espetáculos na Barra da Tijuca, no Rio, e ficou com sequelas. Operou a cervical e a lombar. O lado bom do tombo foi ganhar a música “Dura na Queda”, de Chico Buarque (“Bambeia/Cambaleia/É dura na queda”).

Recém-operada de uma catarata, hoje Elza garante não sentir dores, “a não ser no pé que, às vezes, cisma de inchar, não sei porquê”. Diz que está pronta para mais. E se mostra incomodada quando indagada sobre o legado que deseja deixar.

“Pelo amor de Deus! Não tenho tempo de pensar nisso. Se pensar nisso agora, vão achar que estou indo embora. Penso no agora.”

Dona do premiado álbum “A Mulher do Fim do Mundo”, diz que esse fim não passa pela sua cabeça. “Não penso no fim do mundo, não. Penso no fim da existência das pessoas. A gente está indo por um caminho muito doloroso, vendo as pessoas se trucidando, sem respeito. Acabou o amor. Isso me preocupa muito.”

“Eu mereço”

Uma das primeiras —e poucas— mulheres a puxar um samba na Sapucaí (estreou em 1969, no Salgueiro), Elza voltará ao Sambódromo do Rio, em 2020. Desta vez, como homenageada. Sua escola de coração, a Mocidade Independente de Padre Miguel, levará para a avenida o enredo “Elza Deusa Soares”, com samba assinado por Sandra de Sá e outros sete compositores. Sandra, aliás, foi a primeira mulher a vencer uma disputa de samba-enredo na escola.

Sem falsa modéstia, Elza se rende à homenagem.

“Lógico que eu mereço. Mereço tudo que está acontecendo comigo porque eu trabalhei pra isso. E quero mais, lógico. Não parei por aqui. Quero vida, saúde e ver esse país mudar.”

“Quando olho para minha trajetória, passa um filme de glória, não de tristeza. Lutei e consegui. Luto, ainda, e consigo. Estou viva. Enquanto tem vida, você tem uma caminhada pela frente.”

E, nessa longa caminhada, pode se dar ao luxo de não falar de idade, de cantoras revelação ou de novos compositores. Elza quer mesmo é falar dela.

“Não vou falar de ninguém que esteja ouvindo agora. Nem cite nomes. Preciso ficar com meu Caetano.”

Faz-me rir

Elza está cansada. Na sala de seu apartamento, com vista para o mar de Copacabana, rodeada por amigos, neta, empresários, quitutes, muito observa. Pouco sorri. Diz que lhe falta motivo para dar risada.

“Daria uma gargalhada agora se o Brasil mudasse. Por enquanto, não dá. Vou rir de quê? Só se eu fosse um palhaço e risse de mim. Tem nada pra rir.”

Nada mesmo que lhe dê alegria, Elza?

“Só o Flamengo, lógico. Sou flamenguista, né?”

Então seria Zico o maior ídolo do futebol?

“O maior ídolo do futebol, pra mim, chama-se Garrincha. Zico é o do Flamengo, né? Agora, do mundo, pra mim, é o Garrincha. Mas, de futebol, a gente está indo muito bem. Mengo! Viu? Me fez rir.”

Fonte: Universa
Créditos: Luíza Souto