Uma tarde em uma sala de cinema de Belém e o impensável se tornaria possível naquelas terras do Norte. Guitarra ainda era objeto das galáxias e guitarrista um ser mitológico quando Vieira viu na tela grande, com seus 14 anos, um homem tirando de um instrumento desses uma música que nunca havia passado pelo mundo. Vieirinha pegou o barco de volta ao povoado de Barcarena, ainda em estado de choque. O bandolim que sabia tocar graças ao incentivo do pai português tinha, em algum lugar do planeta, um primo maior, mais robusto e mais pesado com uma sensibilidade de fazer chorar. Vieira precisava de uma geringonça daquelas. “Eu quero tocar aquele pau elétrico.”
Mestre Vieira, aos 82 anos, fala baixo ao lembrar da própria história. Ele tem feito isso mais vezes depois de uma reavaliação pela qual passou a música paraense nos anos 2000 e, mais profundamente, diante das câmeras da jornalista Luciana Medeiros, que já finalizou um documentário, Coisa Maravilha, a Invenção da Guitarrada, para ser exibido no segundo semestre. Vieira recebe o Estado em sua casa na mesma Barcarena em que nasceu, fez sua revolução particular e permaneceu para torcer pelo Clube Atlético Barcarenense com a mesma devoção que coloca na divindade dependurada na parede do quarto.
Ela está lá, uma guitarra Ibanez Artcore AF75 semiacústica de nome Milagrosa. “Por que Milagrosa, Mestre?” “Porque eu faço com ela uns milagres por aí”, diz. Foi assim desde o início, depois do bendito filme do qual se esquece o nome. Sem uma loja na cidade que vendesse nada parecido com aquilo, Vieira foi agraciado pela primeira bênção: um amigo da Marinha lhe trouxe, de passagem pelos EUA, um instrumento novinho, mas desmontado e sem manual de instruções. Deus ensina a pescar sem dar o peixe. O irmão marceneiro conseguiu pôr os parafusos na maioria dos buracos e as cordas de aço foram aproveitadas de um violão da família já na fila da Previdência. A guitarra estava pronta, mas não saía som. O segundo milagre veio então pelas mãos de um padre italiano. Entendido em fios e alto-falantes, ele ensinou o garoto a usar a bateria de um carro para energizar um sistema de rádio, primo distante de uma caixa amplificadora, e emprestava as trombetas da paróquia para a propagação do som. Já havia a guitarra e o amplificador, só faltava a banda.
Vieira saiu pelas igrejas de Barcarena caçando talentos por trás dos hinos de louvor. O baixista veio com o mesmo espírito arquitetônico de Vieira: seu baixo tinha apenas duas cordas, não possuía trastes e só um captador de violão. Era o suficiente. Com mais Dejacir no vocal, Lauro na base e Pereira na bateria, Mestre Vieira tinha sua tropa de choque intitulada Os Dinâmicos para conquistar o mundo. E para lá foram eles.
A guitarrada inventada por Vieira saiu de uma técnica do choro, da transposição pura da linguagem do bandolim que tocava para seu novo instrumento. Apesar de seu fascínio inicial pelo rock, ele não se contaminou pelo estilo que definiria a performance de outros guitarristas. BB King? Não conhece. Chuck Berry? Nunca ouviu falar. Jacob do Bandolim? Um herói. Vieira criou assim a escola de guitarra mais brasileira de todas, sem distorção, de bends discretos, fraseado limpo. Mesmo quando é só instrumental, sua música é avassaladoramente popular. Desde o dia em que prenunciaria o futuro de um gênero colocando o nome de seu primeiro disco de Lambada das Quebradas, em 1978, até o documentário que em breve vai recolocá-lo em voga, Vieira lançaria 18 discos ao todo, na grande maioria LPs nunca editados em CDs.
“Viajamos a Fortaleza, Recife, Natal, Salvador. Depois, fui conhecer Londres, que tinha aquele relógio grande na praça, Portugal, Alemanha, África do Sul. As pessoas ficavam doidas com o som”, ele conta, sem precisar exatamente os fatos e com movimentos lentos que revelam a fragilidade física. O tratamento contra um câncer iniciado na próstata tem alternado o estado de espírito de seus dias. “As histórias estão todas no documentário”, conta Luciana Medeiros. “Vieira já foi reconhecido como patrimônio cultural de Barcarena.” Seu segundo projeto sobre a história de Vieira e os Dinâmicos, que voltam à estrada graças ao documentário se apresentando com três integrantes originais mais o tecladista Luiz Poça, é uma série de animação com o nome da banda. E um terceiro, um songbook com as principais músicas do mestre, deve servir para deixar registrado em cartório todos os feitos de Milagrosa.
Por nunca ter querido deixar sua terra, Mestre Vieira talvez tenha pago um preço alto por essa decisão. “Ele quis ficar e nós acabamos não aparecendo tanto quanto poderíamos”, diz o guitarrista Lauro, tentando entender por que Os Dinâmicos não foram levados pelas graças da lambada quando esse gênero se esparramou pelo País. O fato é que Vieira tem raízes profundas. Sua música, gravada até hoje em estúdios barcarenenses, não foi domesticada nem embrulhada para presente.
O monstro chegou às margens de um dos rios da Baía do Marajó, na ribeirinha Barcarena, em 1974. A baleia enorme debatendo-se para sobreviver despertava a curiosidade das crianças, inspirava a fome dos velhos e colocava uma ideia na cabeça de Joaquim de Lima Vieira, o Mestre Vieira. Estava ali o tema para uma nova música. A Lambada da Baleia, gravada de forma independente naquele mesmo ano, chegou aos ouvidos dos produtores locais da gravadora Continental, que passavam pela cidade, apenas em 1976. Mais dois anos e seu primeiro álbum, Lambada das Quebradas, sairia pelo selo.
À revelia de Vieira e sem o conhecimento da própria gravadora, o Nordeste recebeu músicas como o Melô do Bode com uma euforia surpreendente. Vieira e os Dinâmicos só saberiam do sucesso que faziam no Recife, em Natal e Fortaleza quando pisassem nessas terras. “Era incrível, tinha gente demais querendo autógrafo”, lembra o cantor Dejacir Magno. Os aeroportos os recebiam com filas de fãs e os hotéis com tratamento vip.
Com um novo baterista, Jairo Rocha, os Dinâmicos fizeram sua mais recente apresentação na sexta-feira passada, dia 7, no Sesc Belém. Os outros integrantes que seguem na estrada, enquanto Mestre Vieira enfrenta o tratamento na luta contra o câncer, são Dejacir, o guitarrista Lauro Honório, o tecladista Luís Poça, o jovem guitarrista Dhiosy Marques e o baixista Cassiano Filho.
Fonte: Estadão